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Vik Muniz |
Todo artista desconstrói e reconstrói o
mundo real e seu universo de expressão. Assim o Poeta que, em seu labor, desmonta e remonta a linguagem.
Acontece de tal modo, que significados comuns se transformam, e novos se instauram, na inter-relação da palavra com com outras, com as quais compõe diferente constelação de sentido.
Acontece de tal modo, que significados comuns se transformam, e novos se instauram, na inter-relação da palavra com com outras, com as quais compõe diferente constelação de sentido.
Reinventada, a Palavra promove o
deslocamento de posições afirmativas por parte do leitor: para este, surge um
novo universo, a um só tempo distinto de sua realidade vivida e diverso de
outros universos artísticos anteriormente experimentados. Esse é o movimento de
revivificação das linguagens e das perspectivas existentes, missão e destino da
Arte e do Artista.
Em Palinódia, poema de Manuel
Bandeira, tal processo pode ser apreendido e fruído.
Histórias
Antes, um pouco de história: do poema
e do título.
O relato da construção do poema, feito
pelo próprio Bandeira, é conhecido e indicia o quanto o poeta vivia – noite e
dia – seu universo inventivo. Serve, também, de lição para escritores e artistas iniciantes: debruçar-se, estar atento e
acolher o menor fragmento de experiência, para recuperá-la enquanto fazer
artístico.
Sua Palinódia foi texto criado em
sonho. Ao acordar, apenas o final lhe veio à memória, e o poeta partiu daí,
para construir a íntegra do poema e dar sentido aos versos lembrados. O
resultado, veremos daqui a pouco.
Agora, o título. O termo “palinódia” é
grego; forma-se de palin (de novo) e oîde (canto), significando canto novo,
diferente ou em outro tom.
A lenda diz que Estesícoro, poeta, escreveu
um poema sobre Helena de Troia, com insinuações que a desagradaram. A bela
Helena, usando de seus poderes, cegou-o. Ao reconhecer a cegueira como castigo por suas
palavras inconvenientes, o poeta escreveu sua Palinódia, ou seja, uma
retratação poética, desdizendo-se. Foi assim que recuperou a visão.
A palinódia é, portanto, um texto
poético em que o poeta nega o que ele mesmo dissera em outro. O que Bandeira
queria desdizer ou negar?
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Vik Muniz |
A palinódia de Bandeira
Eis o poema:
Palinódia
Quem te chamara prima
Arruinaria em mim o
conceito
De teogonias velhíssimas
Todavia viscerais
Naquele inverno
Tomaste banhos de mar
Visitaste as igrejas
(Como se temesses morrer
sem conhecê-las todas)
Tiraste retratos enormes
Telefonavas
telefonavas...
Hoje em verdade te digo
Que não és prima só
Senão prima de prima
Prima-dona de prima
– Primeva.
[BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.]
O poema de Bandeira, em vez de
ser retratação de algo dito em outro (como a palinódia convencional), reúne,
em si, a afirmação e a negação – não de fatos ou comentários, mas de uma imagem de mulher, a quem o eu poético se dirige.
A mudança de concepção acontece na
passagem da primeira para a terceira estrofe. À primeira leitura, pode parecer
que, meramente, nega-se um elo de parentesco – “prima” (primeira estrofe) –, para estabelecer a figura
feminina como objeto de culto e respeito – “primeva” (terceira estrofe).
No entanto, é imperativo perceber que,
para lá da simples metamorfose dos sentimentos, o que importa é a transformação
configurada pela experimentação em
termos da palavra. De fato, “prima” se desdobra e se abre em leque, dando
origem a expressões multifacetadas e ambiguizadas, que se entrelaçam: prima de prima / prima-dona de prima / primeva.
(Estão aí interligados os conceitos de parente, primeira, a mais antiga, Eva,
protagonista,... quantos mais?)
Avançando um pouco mais: a segunda
estrofe, onde se encaixa, como interpretá-la? (Ah!, a genialidade do artista...)
Observe, leitor, que essa estrofe tem
caráter narrativo, e uma das características da narrativa é justamente a
sucessão de fatos no tempo. Daí, então, o marcador temporal e os verbos de
ação, no trecho intermediário: “naquele
inverno... tomaste... visitaste... tiraste... telefonavas”.
Repare, ainda, nos verbos “chamara”,
“arruinaria” (pretérito mais que perfeito e futuro do pretérito) que, na
primeira estrofe, indicam um tempo anterior à narrativa da segunda. E, com
relação à terceira, o marcador temporal “hoje”
e o verbo no presente (“és”), que
assinalam a contraposição do que era no passado, ao que é no presente.
Pois bem, na palinódia original, entre
o dizer e o desdizer, há claramente a decorrência de um tempo: o do primeiro
para o segundo poema. Contudo, em Bandeira, como já referido, tal passagem se
condensa e se dá do início ao fim de um mesmo
texto. E a necessária / esperada progressão temporal é marcada, exatamente, pela
segunda estrofe.
Em conclusão: o texto não se configura
apenas como modificações no plano do que se diz, mas chama a atenção para o modo como diz; faz-se de palavras e
transforma-se por elas, inaugurando novos sentidos.
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