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Martha Barros |
“Com
certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”.
Manoel de Barros, sábio-poeta-criança,
diz e prova: o caminho primeiro da poesia é a infância, povoada de fantasias e
livre de amarras e conceitos; e sua mais original mestra é a criança, que
brinca de inventar a linguagem e compreende, como o poeta, o “reino da
despalavra”.
Então, neste Mês da Criança, quem
melhor que ele – Manoel Wenceslau Leite de Barros, Manoel pantaneiro (“O tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou
pantaneiro”) – recheado de infância, entretido no brincar-palavra, para nos
enredar? Para nos “criançar” poeticamente – a nós, adultos seriíssimos – e para
lançar-se, com crianças de qualquer idade, em jogos peraltas de entortar
palavras?
Uma rã me pedra.
Um passarinho me árvore.
Os jardins se borboletam.
Folhas secas me outonam.
[BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record,
2000.]
Ah!, e não esqueçamos: este é também o
Mês do Professor... Boa data para brincar de escola poética, reinventar e desensinar
gramáticas, transver, transouvir, trans-sentir – transgredir, conservando o
sorriso da infância.
Para o eu lírico, desensinamento é
brincadeira séria. Tão séria, que pode beirar a (des)evangelização, para desvelar
transmutações, explicar delírios e iluminar nascimentos:
No descomeço era o
verbo.
Só depois é que veio o
delírio do verbo.
O delírio do verbo
estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o
verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda
a função de um verbo, ele
delira
E pois.
Em poesia que é voz de
poeta, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar
delírio.
[BARROS, Manoel de. O
livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2004.]
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Martha Barros |
Manoel
para Manoel
Manoel-criança ensinou o caminho a Manoel
poeta-moleque: solitariamente encarapitado na árvore de sua infância, saboreou silêncios,
penetrou no outro lado das coisas, descobriu naturezas. A peraltagem que não
fez, faz agora, ao construir seu reino linguageiro de deslimitação da palavra:
Manoel por Manoel
Eu tenho um ermo enorme
dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho
saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na
infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular
muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem
eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio.
Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no
chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais
comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a
partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma
tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas
raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem
pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo
sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum
lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o
menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e
as árvores.
[BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2010.]
[BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2010.]
Depois, na adolescência já inclinada à
poesia, veio a cumplicidade do adulto/criança, que avaliza e incentiva as
transgressões palavreiras, e abre caminho para a revelação do sagrado direito
de “errar bem o idioma”:
Descobri aos 13 anos que
o que me dava prazer nas
leituras não era a
beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre
Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um
sujeito escaleno.
– Gostar de fazer
defeitos na frase é muito
saudável, o Padre me
disse.
Ele fez um limpamento em
meus receios.
O Padre falou ainda:
Manoel, isso não é doença,
pode muito que você
carregue para o resto da
vida um certo gosto por
nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? –
ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega
por desvios, não anda em
estradas –
Pois é nos desvios que
encontra as melhores
surpresas e os ariticuns
maduros.
Há que apenas saber
errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi
o meu primeiro professor de
agramática.
[BARROS,
Manoel de. O livro das ignorãças. Rio
de Janeiro: Record, 2004.]
Termino com este poema em vídeo, no
qual a contadora de histórias Andi Rubenstein apresenta o conto O menino que carregava água na peneira,
bela metáfora do despropósito de fazer poesia. Eis o texto:
Tenho um livro sobre
águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na
peneira.
A mãe disse que carregar
água na peneira
era o mesmo que roubar
um vento e
sair correndo com ele
para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o
mesmo
que catar espinhos na
água.
O mesmo que criar peixes
no bolso.
O menino era ligado em
despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre
orvalhos.
A mãe reparou que o
menino
gostava mais do vazio,
do que do cheio.
Falava que vazios são
maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele
menino
que era cismado e
esquisito,
porque gostava de
carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu
que
escrever seria o mesmo
que carregar água na
peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça,
monge ou mendigo ao
mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar
as palavras.
Viu que podia fazer
peraltagens com as palavras.
E começou a fazer
peraltagens.
Foi capaz de modificar a
tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia
prodígios.
Até fez uma pedra dar
flor.
A mãe reparava o menino
com ternura.
A mãe falou: Meu filho,
você vai ser poeta!
Você vai carregar água
na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te
amar por seus despropósitos!
[BARROS, Manoel de. Exercícios
de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.]
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