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Estes
são tempos em que se conversa,
pensa, lê sobre consciência, responsabilidade, honestidade, sinceridade – e
sobre tantos outros assuntos ligados ao virtuoso campo da ética. Ou, então, a
seus correlatos contrários...
O
que me sugere partilhar com você, leitor/a, dois textos de escritores
brasileiros.
O
primeiro deles, Um homem de consciência,
é conto do livro Cidades Mortas, em
que Monteiro Lobato volta seu olhar crítico, temperado de sátira e (algum) bom-humor,
para a realidade social, política e econômica da época. Boa parte de sua
crítica está centrada em costumes e personagens de cidadezinhas decadentes, referência
às cidades do interior paulista, pós-ciclo do café.
O
segundo, Uma fábula sobre a fábula, é
original de Malba Tahan (pseudônimo do professor e escritor brasileiro Júlio César de Mello e Souza, autor, também, de
O homem
que calculava). Verdadeira fábula moral, a narrativa tornou-se mais
conhecida por intermédio de Regina Machado, pesquisadora e contadora de histórias,
que a recontou em livro¹.
Os
dois contos cumprem não apenas a missão literária de envolver/encantar o
leitor, como ainda outra: a de levá-lo a refletir sobre certos comportamentos
humanos. É o que os torna, a meu ver, bastante apropriados aos dias de hoje.
Será
esta, também, sua opinião?
Boa
leitura!
¹ MACHADO, Regina. O violino cigano. São Paulo: Cia das Letras, 2004. Ao recontar a
narrativa, a escritora faz uma observação a respeito da forma de invocação
usada por Malba Tahan: “essa invocação
que introduz a história não está escrita de maneira correta. [...] A grafia
certa de ‘Allahur Akbar!’ (que ele traduz com ‘Deus é grande!’) é ‘Allah Hu
Akbar!’ (e a tradução é ‘Deus é o maior!’). Mas isso não tem a menor
importância diante da beleza da história...”
Um homem de consciência
Chamava-se Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens.
Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si
próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser
alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam:
mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com aperto no coração o
desaparecimento visível de sua Itaoca.
– Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos
bem bons – agora um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá
serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate
mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a
minha Itaoca está se acabando...
João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas
para isso necessitava de um fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta
de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.
– É isso – deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo
está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada, então arrumo a trouxa e
boto-me fora daqui.
Um dia, aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro
para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no
crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser
nada, não se julgava capaz de nada...
Ser delegado de uma cidadezinha daquelas é coisa seriíssima. Não
há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda
dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser
delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!
João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em
claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada, botou-as num burro,
montou seu cavalo magro e partiu.
Antes de deixar a cidade, foi visto por um amigo madrugador.
– Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas
e bagagens?
– Vou-me embora – respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca
chegou mesmo ao fim.
– Mas, como? Agora que você está delegado?
– Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a
delegado eu não moro. Adeus.
E sumiu.
MONTEIRO LOBATO, José Bento. CIDADES MORTAS. São Paulo: Brasiliense,
1995.
Uma fábula sobre a fábula
(Lenda Oriental)
(Lenda Oriental)
Allahur Akbar! Allahur
Akbar! (Deus é grande! Deus é grande!)
Quando Deus criou a mulher criou também a Fantasia.
Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de
ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.
Envolta em lindas formas num véu claro e transparente, foi ela
bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras
mulçumanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas
perguntou-lhe:
– Quem és?
– Sou a Verdade! – respondeu ela, com voz firme. – Quero falar
ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Cheique do Islã!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se
em levar a nova ao grão-vizir:
– Senhor, – disse, inclinando-se humilde, – uma mulher
desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harun
Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.
– Como se chama?
– Chama-se Verdade!
– A Verdade! – exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de
grande espanto. – A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria
de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a
desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!
Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à
Verdade:
– Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o
nosso Califa. Com esses ares impudicos não poderás ir à presença do Príncipe
dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos
caminhos de Allah!
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito
triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão
Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação.
E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um
grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun
Al-Raschid...
Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que
usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia
o glorioso senhor das terras mulçumanas.
Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o
chefe dos guardas perguntou-lhe:
– Quem és?
– Sou a Acusação! – respondeu ela, em tom severo. – Quero falar
ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Comendador dos Crentes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a
entender-se como o grão-vizir.
– Senhor – disse, inclinando-se humilde, – uma mulher
desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso
soberano, o sultão Harun Al-Raschid.
– Como se chama?
– Acusação!
– A Acusação? – repetiu o grão-vizir, aterrorizado. – A Acusação
quer entrar nesse palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos
nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que
não, que não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de
um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!
Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse
à Verdade.
– Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras,
próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o
sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!
Vendo quem não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda
mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso
Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.
E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande
palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun
Al-Raschid.
Vestiu-se com riquíssimos trajos, cobriu-se com joias e adornos,
envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em
que vivia o glorioso senhor dos Árabes.
Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês
de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
– Quem és?
– Sou a Fábula – respondeu ela, em tom meigo e mavioso. – Quero
falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harun Al-Raschid, Emir dos
Árabes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu,
radiante, a falar com o grão-vizir:
– Senhor, – disse, inclinando-se, humilde – uma linda e encantadora
mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o
sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.
– Como se chama?
– Chama-se Fábula!
– A Fábula! – exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. – A Fábula
quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a
encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes!
Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira
rainha!
E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a
formosa peregrina entrou.
E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade conseguiu
aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun Al-Raschid, Vigário de
Allah e senhor do grande império mulçumano!
TAHAN, Malba. Minha vida querida. Rio de Janeiro:
Conquista, 1957. Disponível em www.botucatu.sp.gov.br/.../Uma%20fabula%20sobre%20a%20fabula.pdf.
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