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Di Cavalcanti |
Provavelmente, a maioria
dentre nós conserva lembrança das vivências infantis com os primeiros livros e com
as histórias ouvidas, lidas, assistidas. Negativas ou positivas, as experiências
da infância são marcantes e conseguem influenciar as inclinações leitoras (e
escritoras) do adulto.
À semelhança dos escritores
da matéria anterior (08/09/2014), e possivelmente com maior força, os autores¹
que trago hoje testemunham a importância das primeiras descobertas relativas à
arte verbal – via leitura de material
impresso ou mediação de um adulto –, para sua produção e inclinação artístico-literária
posterior.
Confiram os depoimentos
e trechos de suas produções, a seguir.
¹ A
íntegra dos depoimentos desta matéria, assim como na anterior, está em Memórias
da Literatura Infantil e Juvenil .Trajetórias de Leitura. www.museudapessoa.net/public/.../memoriasliterarias_8dez2009-final.pdf.
1. Marina Colasanti
Jogos
de ficção, narrativas de aventuras, contos de fada
Eu
tive tantos amigos... Maravilhosos! Primeiro, meu irmão, amigo múltiplo, porque
era o meu ídolo. Mais velho, tudo o que dizia sempre era mais certo do que o
que eu falasse. Deixou essa certeza muito nítida desde o início: “Você é burra
e eu sou o inteligente, você é fraca e eu sou o forte, você cala a boca senão
eu te dou uma porrada!”. Mas nos amávamos. Ele desempenhava vários papéis.
Inclusive tínhamos um casal de amigos imaginários, com os quais a gente
brincava, porque éramos sozinhos.
[...]
Líamos
sem parar. Sabe o que é sem parar? Ler, ler, ler... Devorávamos livros. Não
havia solidão nenhuma, porque quando se está lendo... Brincávamos também com
Sancho, Dom Quixote, os heróis do Emilio Salgari... Os livros nos fizeram imensa
companhia.
[...]
Não
tenho lembrança de ausência de livro. Sou de uma cultura leitora. A Europa é
leitora. Então, uma casa sem livro é inconcebível. Nunca ganhei um primeiro
livro, eles estavam ao meu redor sempre. Quando não sabia ler, minha mãe lia para
mim. Depois é que aprendi. Há uma continuidade. Não há um momento em que o
livro entra – o livro sempre esteve.
[Leituras
da infância:] Os contos de fada, seguramente, porque hoje em dia posso dizer
que tenho uma obra... Detesto essa palavra, pode parecer muito pretensiosa, mas
quero dizer que tenho um corpus em contos de fada já consistente. São raros os
autores que trabalham com contos de fada hoje em dia, é complicado trabalhar
com eles, porque são confundidos com literatura infantil, há uma série de
percalços. É claro que isso vem de uma paixão. Durante toda a minha primeira
infância fui orientada com contos de fada [...]
Amostra
de produção
No conto transcrito a
seguir, note-se a ousadia da autora em usar o conto de fada tradicional, mas subvertê-lo
em seu final, apresentando, poeticamente, o amor e a união (e não um objeto, ou
um ser fantástico) como elementos mágicos capazes de unir os enamorados.
Com
certeza tenho amor
Moça tão resguardada por
seus pais não deveria ter ido à feira. Nem foi, embora muito desejasse. Mas
porque o desejava, convenceu a ama que a acompanhava a tomar uma rua em vez de
outra para ir à igreja, e a rua que tomaram passava tão perto da feira que seus
sons a percorriam como água e as crês todas da feira pareciam espelhar-se nas
paredes claras. Foi dessa rua, olhando através do véu que lhe cobria metade do
rosto que a moça viu os saltimbancos eu suas acrobacias.
E foi nessa rua, recortada
como uma silhueta em suas roupas escuras, o rosto meio coberto por um véu, que
o mais jovem dos saltimbancos, atrasado a caminho da feira, a viu.
Era o mais jovem era o
mais forte era o mais valente entre os onze irmãos. A partir daquele encontro,
porém, uma fraqueza que não conhecia deslizou para dentro do seu peito. À noite
suspirava como se doente.
– Que tens? –
perguntaram-lhe os irmãos.
– Não sei – respondeu. E
era verdade. Sabia apenas que a moça velada apare cia nos seus sonhos, e que
parecia sonhar mesmo acordado porque mesmo acordado a tinha diante dos olhos.
Àquela rua a moça não
voltou mais. Mas ele a procurou em todas as outras ruas da cidade até vê-la
passar, esperou diante da igreja até vê-la entrar, acompanhou-a ao longe até
vê-la chegar em casa.
Agora sorria, cantava,
embora de repente largasse a comida no prato porque nada mais lhe passava na
garganta.
– Que tens? –
perguntaram-lhe os irmãos.
– Acho, não sei... –
respondeu ele abaixando a cabeça sobre o seu rubor – creio... que tenho amor.
Na sua casa, a moça também
sorria e cantava, largava de repente a comida no prato e se punha a chorar.
– Tenho... sim... com
certeza tenho amor – respondeu à ama que lhe perguntou o que tinha.
Mas nem a ama se alegrou,
nem se alegraram os dez irmãos. Pois como alegrar-se com um amor que não podia
ser?
De fato, tanto riso, tanto
choro acabaram chamando a atenção do pai da moça que, vigilante e sem precisar
perguntar, trancou-a no quarto mais alto da sua alta casa. Não era com um
saltimbanco que havia de casar a filha criada com tanto esmero.
Mas era com um saltimbanco
que ela queria se casar.
E o saltimbanco, ajudado
por seus dez irmãos, começou a se preparar para chegar até ela.
Afinal uma noite, lua
nenhuma que os denunciasse, encaminharam-se os onze para a casa da moça. Seus
pés calçados de feltro calavam-se sobre as pedras.
O mais jovem era o mais
forte, teria ele que sustentar os demais. Pernas abertas e firmes, cravou-se no
chão bem debaixo da janela dela. O segundo irmão subiu para os seus ombros,
estendeu a mão e o terceiro subiu. O quarto escalou os outros até subir nos
ombros do terceiro. E, um por cima do outro, foram se construindo como uma
torre. Até que o último chegou ao topo.
O último chegou ao topo, e
o topo não chegou à altura da janela da moça. De cima a baixo os irmãos
passaram-se a palavra. Os onze pareceram ondejar por um instante. Então o mais
jovem e mais forte saiu debaixo dos pés de seu irmão deixando-o suspenso no ar,
e tomando a mão que este lhe estendeu subiu rapidamente por ele, galgando seus
irmãos um a um.
No alto, a janela se
abriu.
[COLASANTI,
Marina. Vinte e três histórias de um
viajante. Rio de Janeiro: Global,2005.]
2. Ricardo Azevedo
Casos
e histórias populares
Não
tive muito isso [contação de histórias]. Meu pai trabalhava demais, e era meio
fechadão. Ficava muito no escritório, no andar de cima da casa. Era uma casa grande,
e na parte de cima tinha um quarto, que era dos meus irmãos mais velhos, e o
resto era o escritório. Era um baita de um escritório, com sete, oito mil
livros, uma coisa imensa, e ele ficava lá. Ele estava na USP ou no escritório,
estudando, lendo. Vivia uma vida muito ligada ao estudo.
De
vez em quando ele contava histórias, principalmente no sítio, sempre histórias
populares. Inclusive reconto uma delas, que é o “Gaspar, eu caio”. Hoje mexo
com folclore. Aprendi a valorizar isso com meu pai, sem dúvida, desde pequeno.
Ele
fazia umas coisas interessantes. Ele nos pegava – principalmente os três filhos
que tinham mais ou menos a mesma idade, o Alberto, o João e eu – e fazia uns
jograis em casa com um gravadorzinho pequeno de rolo, ainda no tempo de rolo.
Por exemplo, trovas populares, poemas de Castro Alves, Vicente de Carvalho,
Gonçalves Dias, vários poemas de que ele gostava. Ele também participava e dava
uma parte para cada um. Lembro-me de Juca Pirama, agora talvez não saiba recitar,
mas sabia de cor o canto do guerreiro.
[...]
Nasci
no meio de livros, o andar de cima da casa eram livros, e o meu pai e a minha
mãe não eram pessoas de indicar livros. Eram leitores, mas não de indicar. O espírito
da coisa era o seguinte: os livros estão aí, como se fosse um pomar, na
verdade. Você ia lá e pegava a fruta, experimentava, gostava; se não gostava,
cuspia. Era essa a sensação que eu tinha.
[...]
Tínhamos
lá em casa o Thesouro da juventude, tenho até hoje essa coleção, guardei. Eu
era um habitué do Thesouro da juventude. Eu me interessava pelos contos que ele
tinha: contos populares, em todos os volumes. Como eram dezoito volumes e cada
um tinha uns dez ou doze contos, era uma festa. Sempre pegava um volume
qualquer e ia direto aos contos. Foi uma leitura muito importante.
Amostra
de produção
Na obra de Ricardo
Azevedo, sobressaem-se a pesquisa e a produção relativas ao folclore e à
tradição oral. O conto a seguir mostra um tanto de humor negro e outro tanto de
gaiatice (castigada), bem próprios dos contos populares.
Três
moços malvados (versão de um conto popular)
Eram três moços malvados. Gostavam de
entrar no mato caçar tudo quanto é bicho. Levavam espingarda de chumbo grosso,
espingarda de cartucho e até revolver de dois canos. Ficavam o dia inteiro
dando tiro. Matavam arara, papagaio, tucano, bem-te-vi, sanhaço, tiziu,
caga-sebo, pintassilgo, joão-de-barro, andorinha, rolinha, sofrê, sabiá,
sem-fim e corrupião. Matavam macuco, caburé, curiango, coruja,
mutum-de-penacho, pica-pau, saíra, garça, quero-quero, socó, jaburu, irerê e
pato-do-mato. E também bicho grande que nem tamanduá, tatu, gambá, bicho
preguiça, veado, ouriço, capivara, cotia, paca, preá, anta, macaco, quati,
tartaruga e cachorro-do-mato.
Os três bandidos caçavam por caçar.
Matavam por divertimento. Gostavam de ver quem tinha melhor pontaria, quem
acertava num tiro só, quem destruía mais.
Um, dia, durante a caçada, escutaram
uma voz grossa gritando no fundo do mato:
– Olha o laço!
Os três estranharam. E a voz grossa:
– Olha o laço!
Os três pararam para ouvir melhor e a
voz grossa só no:
– Olha o laço!
Os moços acharam graça. Um deles
disse:
– Vamos procurar o tal do laço pra
gente olhar?
Os outros acharam ótima ideia. E assim
os malvados foram se embrenhando na mata.
Andaram que andaram que andaram cada
vez mais fundo, cada vez mais longe de tudo. A floresta foi ficando escura e
cheia de sombras.
Os moços acabaram indo parar numa
clareira. Debaixo de um imenso pé de jatobá encontraram três sacos cheios de
dinheiro. Festejaram dando tiros para o alto.
– A gente agora tá podre de rico!
Logo fizeram uma combinação. Enquanto
um deles ia até a cidade comprar vinho para comemorar, os outros dois ficariam
na clareira tomando conta do tesouro.
Um dos moços partiu e os outros dois
ficaram.
Um dos que ficaram, olhando aquele
dinheirão, começou a fazer contas e pensou:
– Vou acabar com meu colega. Quando o
outro voltar dou cabo dele também. Assim o dinheiro fica todinho pra mim.
O malvado não pensou duas vezes. Sacou
a arma, atirou no companheiro, matou-o e enterrou o corpo ali mesmo. Depois,
acendeu um cigarro e ficou esperando sentado debaixo do jatobá.
Acontece que o moço que foi à cidade
comprar vinho teve uma ideia parecida:
– Levo o vinho cheio de veneno. Assim
os dois bebem, morrem e eu fico com o dinheiro todo.
E fez isso mesmo. Comprou um garrafão
de vinho tinto, encheu de veneno de rato e voltou para dentro do mato.
Quando chegou à clareira, levou um
tiro e morreu na hora.
O último moço, o bandido que sobrou,
sentou numa pedra para descansar. Olhando os três sacos de dinheiro, esfregou
mãos de felicidade.
– Agora sim! – disse ele – Fiquei
rico. Não vou trabalhar nunca mais. Vou passar o resto da vida comprando
coisas, casas, roupas, carros, joias, fazendas…
Dizendo isso, arrancou a rolha do
garrafão de vinho e bebeu quase tudo de um gole só.
Foi engolir o vinho e cair duro no
chão.
Assim, o laço do diabo terminou de
apertar seu nó.
[AZEVEDO, Ricardo. Armazém do Folclore. São Paulo: Ática, 2006.]
3. Tatiana Belinky
Poemas
lidos, memorizados, declamados
Para
mim não existia brinquedo melhor que livro, até hoje. Meus primeiros livros
eram de poesia, poemas. Meu pai lia para mim, desde sempre.
E
os poemas que ele lia eram dos bons, não qualquer coisinha. Era Púchkin,
Goethe, coisas assim. Eles não escreviam para crianças, mas alguns poemas
serviam. Até hoje me lembro de algumas poesias; alguns poemas saíram publicados
aqui, os traduzi de cor, nem tinha o original: Di-versos russos; Di-versos
alemães; e Di-versos hebraicos.
[...]
Meu
pai lia poemas em voz alta e dizia os poemas como um artista, que mexia com
todo mundo, adultos também. Era artista mesmo. E gostava de poesia. Eu me criei
com poesias e com literatura. Ele lia a Bíblia, Velho Testamento, contava
histórias da Bíblia. Lia contos de grandes escritores. Grandes escritores! Não
era literaturinha, não. Era boa literatura mesmo, porque todos escreveram
coisas que criança pode ouvir. Entende mais, entende menos, mas se acostuma.
Comecei a entender muito rapidamente, lia tudo o que me caía nas mãos. Lia o
que meus pais liam, o que meus avós liam... O que achava eu lia, entendesse ou
não. E o único bem pessoal que trouxe dos meus dez anos foi um livro, que tenho
até hoje. Um livro de contos de Turgeniev – um grande escritor –, chamado
Turgeniev para crianças. Não foram escritos para crianças, mas escolhidos
porque podiam chegar às crianças . Traduzi muitos desses contos para o
português. Alguns deles eu ficava na máquina traduzindo sem olhar para o livro,
de tanto que eu sabia, tinha uma memória ótima. Meu pai fazia exibição com a
minha memória para as visitas. Pegava um livro, escolhia um poema, lia uma vez
e dizia: “Conta”. Eu recitava direto. Criança tem essa memória chamada memória
eidética, que é como memória fotográfica, mas de palavras.
Amostra
de produção
Apaixonada pela
literatura, Tatiana Belinky escreveu obras infanto-juvenis, adaptou Lobato para
a televisão, traduziu poemas e escreveu os divertidos limeriques, que ela própria descreveu assim, em entrevista:
“É a forma de versinho de cinco estrofes. Primeira, segunda e quinta com
nove sílabas, rimando. Terceira e quarta curtas, rimando. [...] Todo mundo
conhece limerique por minha causa, mas não fui eu que inventei. É uma coisa
inglesa, irlandesa até, acho.”
Aqui, um deles:
Você sabe o que é Cocanha?
Cocanha é uma terra estranha,
País que se esconde
Ninguém sabe onde –
Lugar misterioso, a Cocanha.
A vida ali é um deleite
Suave tal qual puro azeite –
Na bela Cocanha
O povo se banha
Em rios de mel e de leite.
Cocanha é o país que enfeitiça,
Atrai pela santa preguiça
Da tal vida airada
Do "não fazer nada",
Do "nada importa" por
premissa.
Agora, responda ligeiro,
Não leve um dia inteiro
Para decidir
Se quer residir
Naquele país, tão maneiro!
Então eu respondo ao assédio:
Se não houver outro remédio
Eu vou desistir
De lá residir –
Pois lá morreria... De tédio!
[BELINKY,
Tatiana. Limeriques da Cocanha. São
Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008.]
Você que me lê...
E... qualquer que seja
sua idade: o que acha de socializar suas experiências de leitura e escrita? O
que o moveu ou move? O que o comove? O que serve de impulso ou trava?
Esteja certo/a: a
partilha de experiências pode ajudar-nos a formar uma comunidade de leitores e
escritores.
Espero seu comentário ou
depoimento!
Um abraço.
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