Sabemos: a necessidade social e
pessoal da expressão falada e escrita torna seu aprendizado imprescindível, mas
nem sempre o aluno se volta, de boa vontade, para ele. Aliás, a missão do
professor é cada vez mais difícil, numa sociedade em que os múltiplos estímulos
fazem com que a pressa ruidosa, o tempo e o fazer abreviados sejam os ditadores
da maioria de nossas ações. Pois que a leitura e a escrita cuidadosas pedem o
contrário: um tempo alongado de calma, tranquilidade e silêncio.
Por seu lado, as escolas, ao
trabalharem predominantemente com livros didáticos e textos literários
resumidos, mutilados, ou como pretextos para exercícios maçantes, pouco mostram
do encantamento de ler e escrever – dessa real suspensão do tempo externo e até
mesmo da respiração –, que poderia se contrapor à agitação e dispersão da
criança e do jovem, fascinados por tantos chamamentos atrativos “do lado de
fora”.
E é por isso e exatamente ali – nas
escolas – que, muitas vezes, está o germe do distanciamento em relação à
leitura e escrita. A aprendizagem da língua (como de qualquer outra) só se
realiza com o engajamento do aluno, e isso não acontece sem que exista, primeiro,
a chama do prazer, capaz de despertar a necessidade interior.
Contudo, como invocar esse prazer? Uma
das mais seguras formas de tornar um indivíduo entusiasta da palavra, a ponto
de querer até criar seus próprios textos, é interessá-lo pela leitura. Apesar de todo o contexto negativo, muitos
professores – embora eles próprios pressionados por programas e horários –
alcançam conquistar o aluno para tal hábito, notadamente com seu exemplo e seu
entusiasmo; ou seja, vivendo, com o coletivo da classe, uma experiência de vida.
Diz Sonia Kramer (os grifos são meus)1:
“Quando
penso na leitura como experiência (na escola, na sala de aula ou fora delas),
refiro-me a momentos nos quais fazemos comentários sobre livros ou revistas que
lemos, trocando, negando, elogiando ou criticando, contando mesmo. Enfim, situações nas quais – tal como uma viagem,
uma aventura – fale-se de livros e de histórias, contos, poemas ou personagens,
compartilhando sentimentos e reflexões, plantando no ouvinte a coisa narrada,
criando um solo comum de interlocutores, uma comunidade, uma coletividade.
O que faz da leitura uma experiência é entrar nessa corrente onde a leitura é
partilhada e onde, tanto quem lê, quanto quem propiciou a leitura ao escrever,
aprendem, crescem, são desafiados.”
E mais:
“Defendo
a leitura da literatura, da poesia, de textos que têm dimensão artística, não
por erudição. Não é o acúmulo de
informação sobre clássicos, sobre gêneros ou sobre estilos, escolas ou
correntes literárias que torna a leitura uma experiência, mas sim o modo de
realização dessa leitura: ela deve ser capaz de engendrar uma reflexão para
além do momento em que acontece, ser capaz de ajudar a compreender a história
vivida antes e sistematizada ou contada nos livros.”
Conheço – e você, leitor,
provavelmente também – professores que se preocupam em extrapolar o livro
didático, sacudir o rotineiro e esperado, mostrar que na escola há movimento
vivo (e não pasmaceira), que tudo o que se inventou, criou e escreveu até o
momento tem, sim, relação com cada ser, em seu espaço e tempo vividos. Que buscam
ampliar o olhar do aluno, com produções artísticas, dados científicos e
culturais que o habilitem a interessar-se pelo passado, compreender seu
presente e projetar ações para o futuro.
Em vez de citar nomes de hoje, dou o
exemplo de um professor, jamais esquecido, que soube fazer tudo isso, em meus
tempos de faculdade: Flávio Di Giorgi.
1
KRAMER,Sonia. Leitura escrita como
experiência – seu papel na formação de sujeitos sociais. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/84883809/31
Flávio
e o entusiasmo da descoberta
Na década de 70, Flávio Vespasiano Di
Giorgi2 foi meu professor de Literatura
Geral. Falava de vida e de obras; citava, declamava, analisava; mostrava fios
entre textos, autores, experiências e tempos; mexia com cada uma das almas,
profundamente atentas, da sala; ouvia e incorporava nossas vozes, relacionava
ideias, sentimentos e emoções.
Desvelava plurissentidos de obras
artísticas, apontava o alcance social e a dimensão humana de cada criação. Dava-nos
o embasamento necessário (e a coragem e o desejo) para que saíssemos em busca
de outros horizontes, por meio de leitura de obras e do mundo.
Seu papel era o de construtor: “De
autoridade. De autoria. De autonomia. De conhecimentos (que são sempre
histórico-sociais), de críticas, de afetos.”3 Para a classe (cada vez mais cheia de
alunos de outras salas...), ler, ouvir, escrever, falar, passava a ter dimensão
de alargamento do conhecimento e da história, tanto pessoal quanto social.
Não era por acaso que suas aulas
atraíam tantos jovens. Nenhum estudante consultava o relógio, muito menos
avisava nosso empolgado e empolgante professor que o sinal de término do
horário há muito tinha soado. Porque havia encontro e celebração: autor/leitor;
leitor/leitor; leitor/ouvinte; e, mais tarde, ação responsiva do leitor-aluno,
que muitas vezes se animava a tornar-se autor e se oferecer à apreciação de
outros leitores.
2 Flávio Vespasiano Di Giorgi,
ainda hoje lembrado por inúmeros de seus alunos, era professor de línguas
(Português, Latim, Grego), Literatura, Filosofia, Teoria do Conhecimento,
História das Religiões, Teoria da Comunicação e Semiótica.
3 KRAMER, Sonia, apud PASSARELLI,
Lílian Ghiuro. Ensino e correção na
produção de textos escolares. São Paulo: Cortez, 2012.
Da
recepção à produção, passando pelo coração
Michèle Petit, em A Arte de Ler, discorre sobre a reconstrução de sentidos vivenciais
(mais que isso, sobre experiências curadoras) de pessoas sofridas,
especialmente jovens, os quais, afirma, foram “tocados pela palavra”. Isso porque certos mediadores de grupos de
leitura apontaram um matiz bem diferente daquele que a escola normalmente
oferece. Abriu-se, assim, a disponibilidade de cada um, para deter-se, ouvir narrativas
lidas e contadas pelo mediador e, por meio delas, reconhecer-se enquanto
sentimentos, emoções e ser histórico. Daí para a autoexpressão – falar e
escrever – o caminho ficava mais curto. Eis o depoimento de uma jovem,
indiciando a diferença entre a percepção atual e seu passado como leitora:
“A
escola foi uma experiência sem valor, a leitura era obrigatória, imposta,
aprendi apenas a memorizar os textos, o ato de ler não tinha nenhum sentido, eu
só decifrava símbolos. Assim, logo anestesiei a criatividade, a possibilidade e
a capacidade de descobrir. Durante vários anos, era como a Bela Adormecida, não
distinguia nada, não ouvia, não dizia nada.”4
Há alguns dias, assisti à apresentação
da Orquestra Jovem, do Festival de Campo do Jordão (SP). O que mais me chamou a
atenção não foi a performance musical (sem dúvida, competente), mas a
fisionomia dos integrantes, a exprimir doação e enlevo. Era possível perceber
que, em vez do prazer fácil do folgar descompromissado, cada um havia
encontrado, na música, uma fonte maior e mais poderosa de enriquecimento interno.
Essas experiências reveladoras, tais
quais a da jovem leitora e a dos músicos adolescentes, demandam a detenção
demorada da percepção e o comprometimento por longo tempo, a que a juventude
não está habituada. Explicando melhor:
“A
experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar
muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.”5
Se ainda há crianças e adolescentes
que, em meio à superficialidade fervilhante do mundo contemporâneo, dedicam
horas à recepção e produção de música ou literatura (como poderia ser de dança,
pintura, teatro, etc.), o que os move? Provavelmente a paixão, a que chegaram mediante a descoberta dos incontáveis ganhos
de sentidos que as formas de expressão carreiam para nossas vidas.
Entretanto, para se apaixonar, é
preciso conhecer; e essa apresentação dos caminhos da expressão é sempre de
responsabilidade de alguém mais experiente e vivido, que promove, com ações
assertivas, a circulação de conhecimentos e afetos, os verdadeiros estímulos
para a formação de comunidades comunicantes, sensíveis e humanitárias.
Cheguei à leitura e escrita pela
atitude modelar de alguns familiares e de inúmeros professores, como Flávio Di
Giorgi. O que tinham em comum? O entusiasmo infinito pela palavra e a crença em
seu poder emancipador. Quando um professor mostra sua paixão, arrasta consigo
os alunos. Forma-se verdadeira fraternidade, na qual um acolhe e apoia o outro.
Prestar atenção na produção de outro,
tocar, ler, dançar, representar para o outro promove circulação de
conhecimentos e afetos, que são estímulos para vencer barreiras e seguir
adiante. Mas sempre é preciso reconhecer e respeitar, antes, os caminhos do
coração. Como Flávio Di Giorgi. Como outros saudosos mestres, cujas indicações
de leitura ainda hoje me guiam.
Você, leitor, provavelmente teve ou
tem experiências nesse sentido. Que tal torná-las públicas, para incentivo de
outros?
4 PETIT, Michèle. A arte de ler – ou como resistir à
adversidade. São Paulo: Ed. 34,
2009.
5 LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
5 LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
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