A palavra denuncia, a palavra revela,
a palavra faz ver cantos escondidos de nossa alma. Eu já disse isso, não?
Claro que sim, algumas vezes. Em uma
delas, tomei, até, o testemunho de Todorov¹, para validar minha afirmação de
que o texto (oral ou escrito; verbal ou não verbal, não importa) tem o condão
de levar-nos à autoconsciência.
Retomo a ideia, nesta ocasião em que a
sociedade comemora o Dia dos Pais. Não fique o leitor preocupado, pois não
pretendo discutir origens e propósitos de datas “comemorativas/familiares”,
cada vez mais numerosas. Meu intento é tão somente revisitar alguns de nossos
cronistas, para flagrar o que seus textos ficcionais desnudam da real, doce e
trabalhosa missão de ser pai: será possível os papais se reconhecerem ou se
descobrirem neles?
Minha leitura e escolha para registro
recaiu em três crônicas bem-humoradas, que apontam dificuldades de
relacionamento, sem dúvida; mas, ao mesmo tempo, deixam claro o afeto e o
cuidado inerentes à paternidade.
¹ “...
não posso dispensar as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas
me permitem dar forma aos pensamentos que experimento, ordenar o fluxo de
pequenos eventos que constituem minha vida.” TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2009.
Carlos
Drummond de Andrade
Em Drummond, o prazer e o relaxamento
do lazer familiar ficam ameaçados, quando a filha resolve fazer valer sua
vontade. O diálogo divertido e o narrador avaliador conduzem o enredo com um
sabor especial, rumo ao desfecho inesperado... pelo menos para o pai.
No
restaurante
– Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher – quatro
anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia – entrou decidido no
restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de
nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o
carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é,
ou era, da competência dos senhores pais.
– Meu bem, venha cá.
– Quero lasanha.
– Escute aqui, querida. Primeiro
escolhe-se a mesa.
– Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada – lia-se na cara do pai.
Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar
o prato:
– Vou querer lasanha.
– Filhinha, por que não pedimos
camarão? Você gosta tanto de camarão.
– Gosto, mas quero lasanha.
– Eu sei, eu sei que você adora
camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
– Quero lasanha, papai. Não quero
camarão.
– Vamos fazer uma coisa. Depois do
camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
– Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo
instruindo:
— Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
– Traga uma fritada pra dois.
Caprichada.
A coisinha amuou. Então não podia
querer? Queriam querer em nome dela? Porque é proibido comer lasanha? Essas
interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva.
Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:
– Moço, tem lasanha?
– Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
– O senhor providenciou a fritada?
– Já, sim, doutor.
– De camarões bem grandes?
– Daqueles legais, doutor.
– Bem, então me vê um chinite, e pra
ela... O que é que você quer, meu anjo?
– Uma lasanha.
– Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja,
veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro,
interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita.
Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez,
no mundo a vitória do mais forte.
– Estava uma coisa, hem? – comentou o
pai, com um sorriso bem alimentado. – Sábado que vem a gente repete...
Combinado?
– Agora a lasanha, não é, papai?
– Eu estou satisfeito. Uns camarões
tão geniais! Mas você quer comer mesmo?
– Eu e você, tá?
– Meu amor, eu...
– Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a
lasanha.
O pai baixou a cabeça, chamou o
garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala
acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na
conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder
ultrajovem.
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Para gostar de ler -
Vol. 1. São Paulo: Ática, 1999.
Fernando
Sabino
Embora a crônica de Sabino seja do
tempo da máquina de escrever e do um cruzeiro, qualquer pai reconheceria,
na vida agitada de hoje em dia, duas situações bem atuais ali expostas, ou seja,
o frequentemente obrigatório trabalho profissional no próprio lar e a
coparticipação no cuidado dos filhos. O cronista mostra o resultado, quando as
duas tarefas se sobrepõem: a atenção dividida do pai e a obstinação própria da
criança enredam-se, assim, para construir uma narrativa com leves toques de ironia
e boa dose de ternura.
A
fuga
Mal o pai colocou o papel na máquina,
o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho infernal.
– Para com esse barulho, meu filho –
falou, sem se voltar.
Com três anos já sabia reagir como
homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho,
estava só empurrando uma cadeira.
– Pois então para de empurrar a
cadeira.
– Eu vou embora – foi a resposta.
Distraído, o pai não reparou que ele
juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas, enrolando-as
num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um caminhão de plástico com apenas três
rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da despensa –
a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única
arma para a grande aventura, um botão amarrado num barbante.
A calma que baixou então na sala era
vagamente inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o menino. Deu
com a porta da rua aberta, correu até o portão:
– Viu um menino saindo desta casa? –
gritou para o operário que descansava diante da obra do outro lado da rua, sentado
no meio-fio.
– Saiu agora mesmo com uma trouxinha –
informou ele.
Correu até a esquina e teve tempo de
vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do muro. A trouxa, arrastada no
chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o pedaço de
biscoito e – saíra de casa prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Chamou-o, mas
ele apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida, como disposto a
atirar-se diante do ônibus que surgia à distância.
– Meu filho, cuidado!
O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada
para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto. O menino, assustado, arrepiou
carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como a um animalzinho:
– Que susto você me passou, meu filho –
e apertava-o contra o peito, comovido.
– Deixa eu descer, papai. Você está me
machucando.
Irresoluto, o pai pensava agora se não
seria o caso de lhe dar umas palmadas:
– Machucando, é? Fazer uma coisa
dessas com seu pai.
– Me larga. Eu quero ir embora.
Trouxe-o para casa e o largou novamente
na sala – tendo antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave,
como ele fizera com a da despensa.
– Fique aí quietinho, está ouvindo?
Papai está trabalhando.
– Fico, mas vou empurrar esta
cadeira. E o barulho recomeçou.
SABINO,
Fernando. Quadrante 1. Rio de
Janeiro, Ed. do Autor, 1968.
Luís
Fernando Veríssimo
No texto de Veríssimo, o conflito de
gerações estabelece-se em forma de diálogo “pano rápido”, e o narrador
limita-se à irônica avaliação final. Nós, leitores contemporâneos do cronista,
logicamente, reconstruímos o sentido com base em nosso conhecimento de mundo (o
que não aconteceria com leitores de culturas ou tempos muito diferentes deste
espaço e tempo).
Pai
não entende nada
– Um biquíni novo?
– É, pai.
– Você comprou um no ano passado!
– Não serve mais, pai. Eu cresci.
– Como não serve? No ano passado você
tinha 14 anos, este ano tem 15. Não cresceu tanto assim.
– Não serve, pai.
– Está bem, está bem. Toma o dinheiro.
Compra um biquíni maior.
– Maior não, pai. Menor.
Aquele pai, também, não entendia nada.
Veríssimo,
Luis Fernando. Festa de criança. São Paulo: Ática, 2000.
Leitor,
talvez pai...
...Ou, quem sabe, filho/filha: as
leituras suscitaram alguma imagem ou recordação de relações paternas?
Em caso positivo, que tal seguir o
exemplo de nossos escritores e pôr sua experiência no papel?
Eu lhe desejo boa “aventura escritora”!
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