Relembro
a palavra de Rubem Alves, como homenagem ao mestre que ousou sacudir esquemas
fixos e desumanizados de tratar educação, educandos e educadores.
Sua
amorosa inteligência está e permanecerá em seus escritos. Aliás, entre tantos
textos, difícil dizer qual o melhor ou o que traz mais ensinamentos. Escolhi três
crônicas¹, pelo encantamento que me proporcionam: são simples, mas tocantes
lições de ver, ouvir e aprender, que contribuem para enriquecer
nossa forma de perceber o (e estar no) mundo; e, especialmente, instigam
educadores e sociedade a repensarem aspectos significativos, embora nem sempre
abordados, da educação.
Reproduzo-as
a seguir, com destaque aos trechos que julguei dignos de maior atenção, em
minha leitura de educadora. Convido o leitor a fazer o mesmo, detendo-se nas
passagens que, de seu ponto de vista e de acordo com seu lugar e experiência de
vida, merecem maior reflexão.
Boa
leitura.
¹ Originalmente publicadas no caderno Sinapse,
da Folha de São Paulo.
A arte de ouvir
De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do
viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado: “No
princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio.” É do
silêncio que nasce o ouvir. Só posso
ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a
verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve. Sabem
disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as
vozes do silêncio. Veja esse poema de Fernando Pessoa, dirigido a um poeta:
“Cessa o teu canto! Cessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que
vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós.
Ouvi-te e ouvia-a no mesmo tempo e diferentes, juntas a cantar. E a melodia que
não havia se agora a lembro, faz-me chorar...” A magia do poema não está nas
palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos que há entre as suas
palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia
acontece: a melodia me faz chorar.
Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para por não
haver o que dizer tratamos logo de falar qualquer coisa, para pôr um fim no
silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio sobre a psicologia
dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do
outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para o chão? Nada temos a
falar. Esse silêncio é como se fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas
nós dois bem sabemos que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o
elevador pare.
Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o nome do
filme é “Aconteceu em Tóquio”. Duas velhinhas se visitavam. Por horas ficavam
juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam, porque no seu silêncio morava
um mundo. Faziam silêncio não por não ter nada a dizer, mas porque o que tinham
a dizer não cabia em palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do
Ser. A filosofia oriental, pela questão do Vazio, do Nada. É no Vazio da jarra
que se colocam flores.
O aprendizado do ouvir não se
encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional se inicia com a
palavra do professor. A
menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como é a
professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela grita...” Não
bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de que minha
primeira professora, Da. Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos
gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço de medo. Na escola a violência começa com
estupros verbais.
Milan Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete. “Todo mundo
gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve
mesmo? Não sei... O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o
que acontece quando duas pessoas falam. Uma fala e outra lhe corta a palavra:
‘é exatamente como eu, eu...’ e começa a falar de si até que a primeira consiga
por sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’ Essa frase ‘é exatamente como
eu...’ parece ser uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um
engodo. É uma revolta brutal contra uma violência brutal: um esforço para
libertar o nosso ouvido da escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário.
Pois toda a vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um
combate para se apossar do ouvido do outro...”
Será que era isso que acontecia
na escola tradicional? O professor se apossando do ouvido do aluno (pois não é
essa a sua missão?), penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a
força da autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido
silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a razão porque
há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não
haja cursos de escutatória. Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.
Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os adultos procuram
um psicanalista, profissional pago do escutar.) Toda criança também quer ser escutada. Encontrei, na revista
pedagógica italiana “Cem Mondialità” a sugestão de que, antes de se iniciarem
as atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por
semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio das crianças há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos
que nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para
transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que
a sua inteligência desabroche.
Sugiro então aos professores que,
ao lado da sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma justa
preocupação com o escutar claro. Amamos não é a pessoa que fala bonito. É a
pessoa que escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se
assentar...
A complicada arte de ver
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que
estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me
revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou
para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria!
Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera
centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a
cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma
cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive
a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De
repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para
ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os
pimentões... Agora, tudo o que vejo me
causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me
levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes
Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe
disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas.
Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro:
'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas
ensinam a ver".
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de
todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A
sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do
lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o
sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência
própria. Quando vejo os ipês floridos,
sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.
Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que
florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho
para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a
poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e
não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada veem.
"Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta
abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de
ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e
afirmou que a primeira tarefa da
educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua
espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a
abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no
zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos
acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de
dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam.
Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se
abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em
Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o
operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo
naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde
operário, um operário em construção".
A diferença se encontra
no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de
ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com
eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação.
O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não
gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se
transformam em órgãos de prazer: brincam com o que veem, olham pelo prazer de
olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na
caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos
brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças
por nossas mestras.
Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus
Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim,
ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas
que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as
tem na mão e olha devagar para elas".
Por isso – porque
eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver – eu gostaria de
sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a
ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da
banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos
vagabundos"...
Não
Esqueça as Perguntas Fundamentais
Vou contar para vocês uma
estória. Não importa se verdadeira ou imaginada. Por vezes, para ver a verdade,
é preciso sair do mundo da realidade e entrar no mundo da fantasia...
Um grupo de psicólogos se
dispôs a fazer uma experiência com macacos. Colocaram cinco macacos dentro de
uma jaula. No meio da jaula, uma mesa. Acima da mesa, pendendo do teto, um
cacho de bananas.
Os macacos gostam de
bananas. Viram a mesa. Perceberam que, subindo na mesa, alcançariam as bananas.
Um dos macacos subiu na mesa para apanhar uma banana. Mas os psicólogos estavam
preparados para tal eventualidade: com uma mangueira deram um banho de água
fria nele. O macaco que estava sobre a mesa, ensopado, desistiu provisoriamente
do seu projeto.
Passados alguns minutos,
voltou o desejo de comer bananas. Outro macaco resolveu comer bananas. Mas, ao
subir na mesa, outro banho de água fria. Depois de o banho se repetir por
quatro vezes, os macacos concluíram que havia uma relação causal entre subir na
mesa e o banho de água fria. Como o medo da água fria era maior que o desejo de
comer bananas, resolveram que o macaco que tentasse subir na mesa levaria uma
surra. Quando um macaco subia na mesa, antes do banho de água fria, os outros
lhe aplicavam a surra merecida.
Aí os psicólogos retiraram
da jaula um macaco e colocaram no seu lugar um outro macaco que nada sabia dos
banhos de água fria. Ele se comportou como qualquer macaco. Foi subir na mesa
para comer as bananas. Mas, antes que o fizesse, os outros quatro lhe aplicaram
a surra prescrita. Sem nada entender e passada a dor da surra, voltou a querer
comer a banana e subiu na mesa. Nova surra. Depois da quarta surra, ele
concluiu: nessa jaula, macaco que sobe na mesa apanha. Adotou, então, a
sabedoria cristalizada pelos políticos humanos que diz: se você não pode
derrotá-los, junte-se a eles.
Os psicólogos retiraram
então um outro macaco e o substituíram por outro. A mesma coisa aconteceu. Os
três macacos originais mais o último macaco, que nada sabia da origem e função
da surra, lhe aplicaram a sova de praxe. Este último macaco também aprendeu
que, naquela jaula, quem subia na mesa apanhava.
E assim continuaram os
psicólogos a substituir os macacos originais por macacos novos, até que na
jaula só ficaram macacos que nada sabiam sobre o banho de água fria. Mas, a
despeito disso, eles continuavam a surrar os macacos que subiam na mesa.
Se perguntássemos aos
macacos a razão das surras, eles responderiam: é assim porque é assim. Nessa
jaula, macaco que sobe na mesa apanha... Haviam se esquecido completamente das
bananas e nada sabiam sobre os banhos. Só pensavam na mesa proibida.
Vamos brincar de
"fazer de conta". Imaginemos que as escolas sejam as jaulas e que nós
estejamos dentro delas... Por favor, não se ofenda, é só faz de conta,
fantasia, para ajudar o pensamento. Nosso
desejo original é comer bananas. Mas já nos esquecemos delas. Há, nas escolas,
uma infinidade de coisas e procedimentos cristalizados pela rotina, pela
burocracia, pelas repetições, pelos melhoramentos. À semelhança dos macacos,
aprendemos que é assim que são as escolas. E nem fazemos perguntas sobre o
sentido daquelas coisas e procedimentos para a educação das crianças. Vou
dar alguns exemplos.
Primeiro, a arquitetura
das escolas. Todas as escolas têm
corredores e salas de aula. As salas servem para separar as crianças em grupos,
segregando-as umas das outras. Por que é assim? Tem de ser assim? Haverá uma outra forma de organizar o espaço,
que permita interação e cooperação entre crianças de idades diferentes, tal
como acontece na vida? A escola não deveria imitar a vida?
Programas. Um programa é
uma organização de saberes numa determinada sequência. Quem determinou que
esses são os saberes e que eles devem ser aprendidos na ordem prescrita? Que uso fazem as crianças desses saberes
na sua vida de cada dia? As crianças escolheriam esses saberes? Os programas
servem igualmente para crianças que vivem nas praias de Alagoas, nas favelas
das cidades, nas montanhas de Minas, nas florestas da Amazônia, nas
cidadezinhas do interior?
Os programas são dados em
unidades de tempo chamadas "aulas". As aulas têm horários definidos.
Ao final, toca-se uma campainha. A criança tem de parar de pensar o que estava
pensando e passar a pensar o que o programa diz que deve ser pensado naquele
tempo. O pensamento obedece às ordens
das campainhas? Por que é necessário que todas as crianças pensem as mesmas
coisas, na mesma hora, no mesmo ritmo? As crianças são todas iguais? O objetivo
da escola é fazer com que as crianças sejam todas iguais?
A
questão é fazer as perguntas fundamentais: por que é assim? Para que serve
isso? Poderia ser de outra forma? Temo
que, como os macacos, concentrados no cuidado com a mesa, acabemos por nos
esquecer das bananas...
uma pessoa fascinante pela simplicidade de expressar seus pensamentos e conhecimentos. Ser essencial, brilhante, eterno...
ResponderExcluirÉ verdade, Jeanne. E sempre se aprende um pouco mais com ele.
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