Bem,
se o assunto do momento é futebol, vamos a ele.
No
Brasil e nesta época do ano, quase ninguém consegue fugir do tema, seja para
criticar, seja para aplaudir. Seleções, jogadores e técnicos que, de outro
modo, poderiam passar despercebidos, conseguem certa fama.
Ah!,
e os rostos mais badalados pela mídia, as entrevistas, o lançamento de modas
por este ou aquele craque... A tietagem de jovens, o olhar maravilhado de
crianças, a paixão de adultos... Tudo está aí, em jornais, revistas, canais de
televisão, redes sociais. E esse amontoado de exposição pública, às vezes,
parece valer mais que a simples e saudável competição esportiva em si.
Não
lhe parece, leitor, que o inflar de egos anda desvirtuando a ideia da ação
coletiva e solidária, tão desejada, especialmente em jogos coletivos? A mim, a
valorização do brilho em detrimento da competência, a disputa nem sempre
elegante por espaço (em campo ou fora dele) e a vaidade exacerbada de alguns
componentes do “nobre esporte” lembraram dois textos que permitem estender o
olhar crítico para comportamentos existentes além do futebol.
O
primeiro, “O gol plagiado”, de Moacyr
Scliar, ridiculariza a pretensão desmedida que toma conta de estrelas (o que
não é, sabemos, exclusividade de esportistas), usando de irônico bom humor.
O
segundo, “Um apólogo”, de Machado de
Assis, nem de longe se refere a esporte. Contudo, a narrativa aponta uma
fraqueza bem humana e que se percebe facilmente nos bastidores desses grandes e
badalados jogos: a autopromoção de alguns, à custa do esforço de outros, com a negação
ou desvalorização do esforço coletivo.
São
textos literários que, ao espelhar aspectos da vida, podem levar-nos a retirar
lições duradouras de acontecimentos pontuais, como o é uma Copa do Mundo de
Futebol. Ao leitor atento, não passarão despercebidas as várias questões
relacionadas à natureza humana: superficialidade, egoísmo, falta de
solidariedade. (E que ninguém se esqueça de refletir sobre o professor de
melancolia, de mestre Machado!)
O
gol plagiado
"Jogador
quer direito autoral sobre seus gols." Esporte,
20.jan.2000
"Prezados senhores: dirigindo-me
a V.Sas., refiro-me à notícia segundo a qual jogadores de futebol do Reino
Unido, como Michael Owen e Ryan Giggs, querem receber autorais pela exibição de
seus gols na mídia. Não tenho o status desses senhores – sou apenas um brasileiro que bate a sua
bolinha nos fins de semana – mas desejo fazer uma grave denúncia: um dos
jogadores citados (oportunamente divulgarei o nome) simplesmente plagiou um gol
feito por mim.
Provas? Basta comparar os tapes dos
referidos gols. No meu caso, trata-se de um trabalho amador – foi feito por meu
filho, de dez anos – mas mesmo assim é bastante nítido. Vê-se que, como eu, o
referido jogador estava num campo de futebol. Nos dois casos, a partida estava
sendo disputada por times de 11 jogadores cada um. Nos dois casos havia uma
bola, havia goleiros. Nos dois casos havia um juiz. No meu caso, um juiz usando
bermudões e chinelos – mas juiz, de qualquer maneira.
Isto, quanto aos aspectos gerais.
Vamos agora aos detalhes. No vídeo do jogador inglês, mostrado no mundo
inteiro, vê-se que ele pega a bola na grande área, domina-a, livra-se de um
adversário e chuta no canto esquerdo, marcando, é forçoso admitir, um belo
tento, um gol que faz jus aos direitos autorais. No meu vídeo – feito uma
semana antes, é importante que se diga –, vê-se que eu pego a bola na grande
área, que a domino, que livro-me de um adversário e que chuto forte no canto
esquerdo, marcando um belo tento.
Conclusão: o jogador inglês me
plagiou. Quero, portanto, metade do que ele receber a título de direitos
autorais. Se não for atendido em minha reivindicação levarei a questão a juízo.
Estou seguro de que ganharei. Além do vídeo, conto com uma testemunha: o meu
filho. Ele viu o jogo do começo ao fim e pode depor a meu favor. É pena não ter
mais testemunhas, mas, infelizmente, ele foi o único espectador desse jogo. E
irá comigo demandar justiça contra o plágio."
SCLIAR,
Moacyr. In O imaginário cotidiano.
São Paulo: Global, 2002.
Um
Apólogo
Era uma vez uma agulha, que disse a um
novelo de linha:
– Por que está você com esse ar, toda
cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe, por quê?
Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei
sempre que me der na cabeça.
– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu
ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a
dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso.
Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você
ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é
que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
– Sim, mas que vale isso? Eu é que
furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu
faço e mando...
– Também os batedores vão adiante do
imperador.
– Você é imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que
você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira
chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma
baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a
costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na
agulha, e entrou a coser. Uma e outra
iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os
dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor
poética. E dizia a agulha:
– Então, senhora linha, ainda teima no
que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos
dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando.
Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que
ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio
na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira
dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nesse e no outro, até
que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa
vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da
bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando,
abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
– Ora, agora, diga-me, quem é que vai
ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é
que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha
da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada;
mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre
agulha:
– Anda, aprende, tola. Cansas-te em
abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na
caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me
espetam, fico.
Contei esta história a um professor de
melancolia, que me disse, abanando a cabeça: – Também eu tenho servido de
agulha a muita linha ordinária!
ASSIS,
Machado. Contos – Série Bom Livro. São Paulo: Ática, 1997.
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