Em 5 de maio (1994),
faleceu Mario Quintana. Para
relembrá-lo, escolhi poemas nos quais o eu lírico volta-se para o próprio
universo poético.
A partir dessa visão, e a ela acrescentando
o sentido do tempo e espaço em que vivemos, nós, leitores, podemos concretizar
e atualizar o olhar abrangente desse poeta de fala simples e lúcida. Nossa
leitura, certamente, irá comprovar o quanto o “velho poeta” permanece presente e eterno; e poderá revelar os
muitos significados de suas palavras.
Aos textos.
Velho
poeta? Velha poesia?
Nos poemas a seguir, a poesia assume a
tarefa de ressignificar e perenizar o habitual, o cotidiano, o nada, deixando um
“gosto de nunca e de sempre”. A eternidade,
assim, alcança o poema e se estende ao “velho
poeta”. Notem a valoração de elementos desimportantes ao olhar desatento:
alguns, como os grilos, têm pistas razoavelmente claras; outros, como o cavalo,
o jornal, o lápis verde, o retrato, o ovo de costura, adquirem nitidez mediante
ligações feitas a cada nova leitura.
Ah,
sim, a velha poesia
Poesia, a minha velha
amiga...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão
importância nenhuma...
a saber:
o silêncio dos velhos
corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas,
muitas luas...)
o primeiro olhar daquela
primeira namorada
que ainda ilumina, ó
alma,
como uma tênue luz de
lamparina,
a tua câmara de
horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo lá
fora os grilos?
Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas
mortos.
Entrego-lhe grilos aos
milhões um lápis verde um retrato
amarelecido um velho
ovo de costura, os teus pecados
as reivindicações as explicações – menos
as reivindicações as explicações – menos
o dar de ombros e os
risos contidos
mas
todas as lágrimas que o
orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger dos dentes
as alegrias agudas até o
grito
a dança dos ossos...
Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe
entrego, a Poesia faz uma coisa que
parece nada tem a ver
com os ingredientes mas que
tem por isso mesmo um
sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.
O
velho poeta
Um dia o meu cavalo
voltará sozinho
E assumindo
Sem saber
A minha própria imagem e
semelhança
Ele virá ler
Como sempre
Neste mesmo café
O nosso jornal de cada
dia
inteiramente alheio ao murmurar das
gentes...
Poesia
em crise?
Crise da poesia? Ou do mundo?
Em “A árvore dos poemas”, fica a advertência para abrirmos os olhos e
examinarmos nosso tempo, descuidado da poesia: ai da geração sem sensibilidade,
porque “qual será o destino das almas?”...
A “Epístola
aos novos bárbaros” aprofunda a visão desse mundo apoético, da máscara das
“almas supersticiosamente pintadas”; mas
aponta, também, para sua redenção, por meio da missão do poeta: “Vim sacudir o que estava dormindo há tanto
dentro de cada um de vós.”
A
árvore dos poemas
Quando a árvore dos
poemas não dá poemas,
Seus galhos se contorcem
todos como mãos de
[enterrados vivos.
Os galhos desnudos,
ressecos, sem o perdão de Deus!
E, depois, meu Deus,
essa lenta procissão de almas
[retirantes...
De vez em quando uma
tomba, exausta a beira do
[caminho,
Porque ninguém lhe chega
ao lábio o frescor de
[cântaro, a doçura de fruto que
poderia haver num
[poema.
Maldita a geração sem
poetas que deixa as almas
[seguirem, seguirem como animais em
estúpida
[migração!
Quando a árvore dos
poemas não dá poemas,
Qual será o destino das almas?
Epístola
aos novos bárbaros
Jamais compreendereis a
terrível simplicidade das
[minhas palavras
porque elas não são
palavras: são rios, pássaros,
[naves...
no rumo de vossas almas
bárbaras.
Sim, vós tendes as
vossas almas supersticiosamente
[pintadas.
e não apenas a cara e o
corpo como os verdadeiros
[selvagens.
Sabeis somente dar
ouvido a palavras que não
[compreendeis,
e todos os vossos deuses
são nascidos do medo.
E eu na verdade não vos
trago a mensagem de
[nenhum deus.
Nem a minha...
Vim sacudir o que estava
dormindo há tanto dentro de
[cada um de vós
a limpar-vos de vossas
tatuagens.
E o frêmito que
sentireis, então, nas almas transfiguradas
não será do revoo dos
anjos... Mas apenas
o beijo amoroso e
invisível do vento
sobre a pele nua.
Então,
o que esperar de um poema?
O poeta desvela a finalidade maior de
sua obra: chamar o leitor a procurar e a recriar sentidos amplos e profundos – nos
textos e na vida:
Projeto
de prefácio
Sábias agudezas...
refinamentos...
– não!
Nada disso encontrarás
aqui.
Um poema não é para te
distraíres
como com essas imagens
mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te
deténs para apreciar um
[detalhe
Um poema não é também
quando paras no fim
porque um verdadeiro
poema continua sempre...
Um poema que não te ajude
a viver e não saiba
[preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho
de palavras!
Nota bibliográfica
Os
poemas registrados encontram-se em:
QUINTANA,
Mário. Baú de espantos. São Paulo:
Globo, 2006. Disponível em PDF: globolivros.globo.com (O velho poeta; Projeto de
prefácio; O pobre poema; A árvore dos poemas; Epístola aos novos bárbaros).
___________.
Os melhores poemas de Mário Quintana.
São Paulo: Global, 1995 (Ah, sim, a velha
poesia).
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