As declarações abaixo são de
estudantes:
“As
professoras falam redação mesmo, produção de texto era o nome da minha disciplina
em que fazíamos redações.”
“Na
escola os professores falam produção de
texto, mas em provas, avaliações, etc., falam redação.”
Entendamos: embora, oficialmente, os
professores usem a terminologia moderna –“produção de textos” –, deixam escapar
a antiga, “redação”, por hábito. A confusão até permite lembrar o final de Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles:
“
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.” ¹
qual é melhor: se é isto ou aquilo.” ¹
Afinal, isto ou aquilo? Ou seria isto
e aquilo? Existe diferença? Se
existe, é diferença importante?
¹
MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
Apenas
um nome?
Na verdade, o nome, em si, não teria
tanta importância, se não viesse associado a posturas diferentes ante o ensino
da língua. Mas proponho chegarmos, juntos, a algumas conclusões.
Na aprendizagem da escrita (também da
leitura, mas aqui trato mais da primeira), não é difícil reconhecer o
protagonismo do professor. Alunos que somos ou fomos, se rememorarmos o
transcorrer de uma aula de redação/produção de texto e analisarmos facilidades,
dificuldades e sentimentos decorrentes, provavelmente concluiremos que muito de
nossa experiência – positiva ou negativa – tem a marca da postura e das
estratégias adotadas por ele.
Escrever é uma conquista que o aluno
dificilmente obtém sem o apoio de um mestre dedicado, pois envolve procedimentos
que precisam ser paulatinamente aprendidos e exercitados. O linguista Marcuschi
explica que o homem é “ser que fala”, não “ser que escreve”. Nascemos para
falar, e a criança cedo adquire a oralidade, em contato com o meio; em
compensação, escrever demanda um bom esforço, tanto de quem ensina quanto de
quem aprende.
Se queremos comunicar algo por meio da
escrita, queremos, evidentemente, ser compreendidos, queremos fazer chegar a alguém
nosso “recado”. Afinal (mesmo se não nos damos conta), escrevemos tendo em
mente um interlocutor que, ausente fisicamente no momento da escrita, não tem
nossos gestos e entonação, nem a possibilidade imediata de indagar e pedir explicações,
no caso de não compreensão. Assim sendo, para que o entendimento se faça de
modo adequado, nossas ideias têm de aparecer “redondinhas” no texto escrito; ou
seja, a linguagem que usamos precisa ser clara, coerente, coesa e ter sempre em
vista o repertório linguístico e os conhecimentos de quem lê.
Essas são habilidades a serem
desenvolvidas prioritariamente pela escola, responsabilidade de todos os
professores, mas função primordial do professor de língua materna, pois sua
mediação se faz sentir desde a alfabetização até o fim do ciclo acadêmico. Compreende-se,
portanto, o quanto é determinante o modo como entende seu objeto de ensino – a
linguagem – e, dentro dela (que é o que nos interessa agora), se assume a
atividade de escrita de seu aluno como redação
ou como produção de textos – o que,
já antecipo, irá se refletir na forma como encara a relação mestre-aprendiz e
como organiza propostas e atividades em suas aulas.
Então, volto à pergunta do início: qual
a diferença entre uma coisa e outra?
Partindo
de um mestre
Para nos ajudar, antes uma pista,
extraída do mestre linguista Geraldi: na redação, produzem-se textos
para a escola; na produção de textos, produzem-se textos na escola.
Subentende-se: “para a escola” é para
o professor, para obter boa nota, para passar de ano, para ter sucesso no
vestibular; é para obedecer ao currículo, às regras da língua; provavelmente,
para aprender a “escrever bonito” e usar uma linguagem mais “aprimorada”,
independente do que se quer comunicar.
Escrever “na escola” é mais que isso e põe em
relevo a função primordial de promover a aprendizagem para a vida: ao olhar
sensível do professor-mediador não escapam os interesses, as preocupações de
seus alunos e, ainda que estes não as privilegiem, também as necessidades
presentes e futuras – deles próprios e da sociedade na qual vivem e devem
atuar. Suas propostas em relação às aulas de língua irão se beneficiar desse
cuidado.
Resumo, relembrando trecho da matéria
de 12/02/14: “Para o aluno, não se
trata de redigir textos para o professor ou para a escola, mas de produzir, na escola, textos que usa e usará
em diversas instâncias de sua vida. [...] A escola deve procurar
reproduzir, de certa forma, o funcionamento da escrita na sociedade. Aliás, ela
é – ou deveria ser – parte e modelo vivo do organismo social.”
Redação
x produção: ilustrando
Para ilustrar a diferença entre
redação e produção de texto, suponhamos que, segundo o planejamento do
professor, é o momento da aprendizagem de produção de carta e crônica.
De início, visualizemos um professor que
considera prioritário e urgente ensinar ao aluno a “composição”, a estrutura do
texto. Em decorrência, escolhe algum assunto para servir de “conteúdo” ao
ensino pretendido e propõe: carta às
autoridades para reclamar da sujeira das ruas; ou, quem sabe, carta a um amigo, convidando-o a
visitá-lo na Páscoa; ou... Enfim, qualquer que seja o assunto, o essencial é
que não faltem: local e data, saudação, assinatura; além, é claro, do corpo do
texto organizado em introdução, desenvolvimento e conclusão.
Em relação à crônica, a proposta poderá ser a de escrever sobre um personagem folclórico
do bairro em que mora (tão comum de existir...); ou sobre um aniversário
diferente (aproveitando que o livro didático traz um texto de Luís Fernando
Veríssimo com o tema); ou...
Sua intenção é a melhor possível:
fazer os alunos conhecerem e exercitarem gêneros previstos no currículo e que
serão objeto da avaliação do bimestre. Entretanto, reparem: a diretriz sobre o
que escrever, vinda apenas do professor, dificilmente terá a adesão de toda a
classe. (Alguém, mais inconformado, até poderá questionar: “para que preciso
saber isso”?) É proposição de uma tarefa a mais, sem a preocupação de se
conectar à realidade do aluno, que a cumprirá simplesmente “porque o professor
pediu”.
Ainda que trabalhe gêneros, conforme pedem as teorias mais
atuais, e qualquer que seja a denominação dada, na prática resulta em
simples exercício de redação, com o
principal escopo de fixar certas normas formais e estruturais, ou seja, a
aprendizagem de regras – do gênero proposto, do encadeamento das frases, da
organização dos parágrafos, de fatos gramaticais e ortográficos... Repetindo:
aprendizagem para a escola, para o planejamento curricular, para a avaliação
traduzida em nota.
Agora, simulemos outra postura. O
professor está atento ao movimento intraclasse, percebe um bom número de alunos
interessados em música e em postar vídeos com suas vozes e conjuntos na
internet; assim, sugere a escrita de uma carta
de solicitação à coordenação do curso, em que a classe, em conjunto, exporá
argumentos para a realização de saraus musicais, ao final dos períodos de aula.
Sua proposta vem ao encontro de algo de interesse coletivo, ao mesmo tempo em
que leva avante a aprendizagem de gênero valioso para a expressão e atuação do
cidadão.
De igual modo, diante da preocupação
evidente dos alunos com o avião da Malásia recentemente desaparecido, direciona
a aula para a produção de uma reportagem
sobre o assunto, orientando a leitura e a coleta de informações em órgãos de
imprensa, a pesquisa sobre a situação geográfica e política do país e o contato
e entrevista com especialista em segurança aérea. A matéria será publicada no
jornal semanal da classe, ou exposta no grande mural do pátio da escola. (A crônica, objetivo preferencial do
bimestre, esperará outra ocasião, ou tratará de tema correlato, podendo
representar as visões particulares dos estudantes sobre os fatos da reportagem.)
Observem que ações reais – de leitura e pesquisa em periódicos, comunicação
oral e/ou escrita com órgãos e pessoas conhecedoras do assunto, partilha de
informações pelo grupo – devem ser empreendidas, até chegar à confecção da
reportagem.
Em todos os gêneros propostos pelo
segundo professor, e percorrendo todo o processo, necessariamente figuram a
abordagem da estruturação de texto e outros aspectos linguísticos e gramaticais
relativos ao gênero proposto e aos
leitores visados.
Assim, desta vez, a aprendizagem
conecta-se à realidade. É produção de
texto, é escrita na escola, para a vida. Nessas condições, o aluno encontra
um motivo para escrever; é mais fácil mergulhar, tomar partido, expressar
opiniões, hipóteses e soluções, porque ele vê seu universo valorizado. Como
ensina Geraldi, trata-se de tomar a palavra do aluno enquanto indicador dos caminhos
a serem seguidos. O professor, longe de ser mero censor e avaliador, é aí
interlocutor privilegiado, que põe sua bagagem especializada a serviço de
aprendizagens mútuas.
O gênero de texto a ser produzido também
não é aleatório; ao contrário, é priorizado por ser adequado à circunstância da
interlocução, ao assunto tratado e ao que se quer dizer. O professor, flexível
o suficiente para não se aferrar ao programa pré-fixado, em vez de julgar sua
determinação soberana, contempla o interesse e vivência do grupo e os
acontecimentos do cotidiano e da vida em sociedade, garantindo de modo eficaz a
possibilidade de envolvimento de cada aluno-escritor.
De seu lado, o aluno sabe que o que
escreve não irá parar na simples avaliação: há pessoas concretas, não
imaginárias, com quem dialogar, há leitores na outra ponta (o professor é,
inevitavelmente, um deles; e, nos exemplos, também os colegas, a coordenação
escolar, os leitores do jornal). Percebe a língua como forma de atuação social,
e a si próprio, como ser de linguagem –
comprometido e responsável por sua palavra, organizada nos textos de sua autoria.
Fica mais fácil, assim, entender por que precisa aprender a escrever; e por
que escrever tantos gêneros: carta de reclamação ou solicitação, reportagem,
conto, crônica, relatório, etc. – textos com características e funções
diferentes, para serem efetivamente usados nas múltiplas situações vividas, e
não encostados num canto da memória dos tempos escolares.
Esta é, verdadeiramente, a produção de textos: a que toma a língua
enquanto fato social, envolve cada situação de vida e considera o ser na
integralidade de seus muitos momentos, de sua história – com seu passado e o
passado de sua gente; com seu futuro e o futuro de outros que virão; com seu
presente e os espaços, pessoas, conhecimentos e vivências que o constituem.
Em síntese, é a proposta de produção de textos (escritos e orais) na
escola, mas não para a (avaliação da) escola, de que fala Geraldi.
Assumir
a utopia
Ideal distante?
Respondo, mais uma vez, com recortes
da lição do mestre:
“Possivelmente,
uma proposta como a aqui esboçada exigirá que o professor [...] abandone a
posição de guardar para si o território de detentor/transmissor de um saber
para se colocar, com os alunos, em outro território: o da construção de
conhecimentos a propósito da linguagem. [...] Para mim, estes estudos do
professor e dos alunos, como quaisquer outros, só serão significativos se
inspirados na utopia compartilhada que faz do homem companheiro do homem.”²
“Assumamos
a utopia”... porém, que ela não seja apenas uma fachada discutida por
autoridades, e que assuma sua verdadeira feição democrática de ser
reivindicada, discutida e vivida por toda a comunidade escolar: todos os
funcionários, não só o professor; toda a família, não só o aluno.
²
GERALDI, João Wanderlei. Portos de
passagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
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