Augusto dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884 e não viveu mais de trinta anos. Sofreu a derrocada financeira da família, certamente, e também as agruras de seu corpo e espírito doentio, como querem alguns.
De qualquer modo, há que se confiar na
descrição que fez dele o amigo e admirador Orris Soares: “Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces
reentrantes, olhos fundos, orelhas violáceas e testa descalvada. A boca fazia a
catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e,
nos lábios, uma crispação de demônio torturado. [...] Foi sempre amparado por
essa visão sofredora que o poeta viu e sentiu a vida. Teve da dor a compreensão
flagrante, sendo o seu coração, por ultrassensível, uma fonte inesgotável de
aflições, que ele nunca soube distrair ou enganar.”¹
Pode-se perguntar: essa percepção
dolorida o conduziu à morte prematura? Ou a premonição da morte é que lhe deu
essa dor, sem remédio, da vida que se sabe fadada à interrupção, ao corte antecipado?
Difícil responder. Mais fácil é
encontrar a mesma sombra angustiante em sua poesia – que ora aspira e se lança
a aventuras ideais e cósmicas, ora se entrega ao desespero de um viver que se
reconhece de antemão perdido, pois conduz à deterioração e ao Nada.
É na linguagem objetiva e nos termos
científicos que a poesia de Augusto dos Anjos encontra os meios de certificar e
definir, com maior rigor, as limitações e finitude – o destino, enfim – da
matéria humana e do mundo físico, rumo à dissolução. No entanto, a mesma
criatura poética que, em certos momentos, se entrega à visão derrotista e
destrutiva, em outros, decola em direção inversa; e, com o mesmo fervor, deseja
alcançar a perenidade do Imaterial e do Infinito. O crítico Anatol Rosenfeld
afirmou: “Entre todos os termos deste
grande poeta não existe um: o termo médio.²”
Transcrevo, a seguir, dois poemas,
dois exemplos dessa oscilação vertiginosa entre opostos.
Em Psicologia de um vencido,
o eu lírico se vê como simples composição orgânica e material, cujo destino
final e inevitável é desagregar-se e servir de pasto aos vermes:
Psicologia de um vencido
Eu,
filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente
hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já
o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda
a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Ao contrário, em Ao Luar, a matéria
aparece sublimada; membros e sentidos se aguçam, e o eu lírico se vê alçando-se
e tocando a grandeza do Cosmos:
Ao Luar
Quando,
à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
Quebro
a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!
Penetro,
agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado…
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado…
Transponho
ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!
¹ O depoimento de
Orris Soares e todos os poemas registrados nesta matéria podem ser encontrados
em: ANJOS, Augusto dos. Eu & Outras
Poesias – 2 vols. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1982.
² ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1969.
A convivência dos opostos
Das duas faces de Augusto dos Anjos
que pudemos ver, a mais conhecida é a que vem ligada ao pessimismo. Entretanto,
a necessidade e inevitabilidade dos opostos – ou, mais ainda, sua coexistência
e implicabilidade para o ser humano – é afirmada em diversos poemas, como neste
soneto, que vem a seguir.
Percebam, nos quartetos, os pares
opositivos e a comparação final (ver negrito), em que o poeta se serve de
termos científicos para sustentar e comprovar sua argumentação de que o
contraste “convém para o homem ser
completo”.
Argumentos semelhantes aparecem nos
tercetos, iniciados pelo verso em que o eu poético, além de tudo, assevera sua
competência para dizer o que diz: “Eu sei
tudo isto mais do que o Eclesiastes!”.
Contrastes
A
antítese do novo e do obsoleto,
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!
O
ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina³
Que servem ambas para o mesmo feto!
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina³
Que servem ambas para o mesmo feto!
Eu
sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,
Às
alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...
³ Eximenina e endimenina: respectivamente,
membranas externa e interna do pólen. Os termos valem como licença e metáfora
poética, estendendo-se a “feto”.
O Vencedor
No embate de experiências (reais ou
imaginárias) divergentes e radicais, surge a expressividade das palavras
extremas, de cunho científico e “apoéticas”, que tantas vezes espantam e chocam,
ainda hoje, os leitores. É a luta do poeta para fazer valer, na linguagem, sua
verdade e intenção.
Dela, o homem Augusto, prisioneiro de
seus sofrimentos, pode até sair machucado e derrotado. Mas o Augusto poeta,
esse... (Leiam e ouçam o poema seguinte.)
Vencedor
Toma
as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!
Não
podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.
Meu
coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram
todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
O poema Vencedor,
na interpretação de Othon Bastos