O que faz com que alguém
seja escritor? O que faz com que um escritor opte por determinada linha de
pensamento, ao escrever? E por que seus escritos parecem se “encaixar” tão bem
em determinado gênero? Enfim, há como explicar seu estilo e suas
características?
Penso essas questões
em relação a Moacyr Scliar (contista, romancista, cronista, ensaísta), neste mês de seu aniversário (nasceu em
23/03/1937). Em Memórias de
um aprendiz de escritor¹, texto autobiográfico, há pistas para
entender sua vocação literária, em geral, e suas qualidades de cronista, em
particular. Vamos a elas.
A precocidade
Parece que Scliar já nasceu escritor:
Nasci, sim. ‘Logo
depois que nasci correu pela vizinhança que eu me chamava Mico...’
Estas linhas, se bem
as lembro – e bem as lembro, sim! – faziam parte de meu primeiro texto, escrito
em papel de embrulho: uma autobiografia, muito precoce e necessariamente curta,
pois eu não teria mais de seis anos. Alfabetizado precocemente por minha mãe,
que era professora primária, eu optara por escrever, ao invés de jogar futebol
(também jogava futebol, na calçada da minha rua; longas partidas, em que eram
marcadas dezenas de gols; mas o futebol era – é – realidade, uma realidade
terrivelmente importante neste país; e à realidade eu preferia a ficção. A
narrativa).
O gosto pela ficção e pelo relato
Um ambiente recheado de narrativas,
personagens e experiências dos antepassados povoa a imaginação da criança:
Na verdade, todas as
minhas recordações estão ligadas a isso, a ouvir e contar histórias. Não só
histórias dos personagens que me encantaram, o Saci-Pererê, o Negrinho do
Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os
Macabeus, os piratas, Tom Sawyer, Sacco e Vanzetti. Mas também as minhas
próprias histórias, as histórias de meus personagens, estas criaturas reais ou
imaginárias com quem convivi desde a infância.
[...]
Cresci ouvindo
histórias. Porque tinham histórias a contar, eles: meus pais, meus tios, nossos
vizinhos. Eram, na maioria, emigrantes. Da Rússia. Lá tinham vivido, como seus
antepassados, em pequenas aldeias, em meio a uma lírica miséria, lendo a
Bíblia, praticando a religião, e trabalhando como artesãos e pequenos
comerciantes. [...]
Contar histórias. Eis
uma coisa que meus pais sabiam fazer particularmente bem, com graça e humor;
sabiam transformar pessoas em personagens, acontecimentos em situações ou
cenas.
O hábito da leitura e da escrita
A convivência com os livros; o valor da casa como primeira escola; o
papel significativo de uma aprendizagem com o afeto e estímulo de pais e
mestres:
De minha mãe adquiri o
gosto pela leitura. Éramos pobres; não indigentes; não chegávamos a passar
fome, mas tínhamos de economizar. Apesar disto nunca me faltou dinheiro para
livros. Minha mãe me levava à tradicional Livraria do Globo e eu podia escolher
à vontade. Desde pequeno estava lendo. De tudo, como até hoje: Monteiro Lobato
e revistas em quadrinhos, divulgação científica e romances.
[...]
Meus pais
orgulhavam-se do que eu escrevia. Não eram ricos, como eu disse antes, mas um
dos primeiros presentes que me deram foi uma máquina de escrever. Usada, claro,
mas excelente – Royal, importada.
[...]
Muitas outras pessoas
me estimularam a escrever. Professores, por exemplo: Lourenço, irmão marista,
meu professor de português no ginásio, que me fez publicar contos e artigos no
jornal mural da escola.
O que está por trás das palavras
Memória e sentimentos do vivido, na
raiz da construção do texto:
Palavras. São tudo,
para quem escreve. Ou quase tudo. Como a serra, o martelo, a plaina, a madeira,
a cola e os pregos para o marceneiro; como a colher, o prumo, os tijolos e a
argamassa para o pedreiro; como a fazenda, a linha, a tesoura e a agulha para o
alfaiate. Estou falando em instrumentos de trabalho, porque literatura nem
sempre parece trabalho.
[...]
As palavras são tudo,
você disse, Moacyr? Você mentiu, Moacyr. Mais uma vez você mentiu. As palavras
não são tudo, e disso você bem sabe. A emoção conta, caro Moacyr. A emoção, as
ideias, as lembranças.
Consciência crítica
A relativização do valor pessoal e, em
contrapartida, a preocupação e valorização do outro e do coletivo, resultantes de
vivências pessoais, acadêmicas e profissionais:
Mico. Este apelido me
marcou, pois os nomes marcam as pessoas. Todos os Brunos são fortes, todos os
Betos são irrequietos – tenho um filho chamado Beto, sei disto. Mico – o que é
que eu podia esperar da vida? Mico. Nunca conheci ninguém com este apelido. Na
minha rua havia um Mike, e depois tive um amigo chamado Micão, mas Mico, de
macaco, era só eu. Por causa deste apelido, acho, nunca pude me levar a sério.
Felizmente. Nada mais chato que um sujeito que se leva inteiramente a sério.
Cada vez que me julgo importante, por ser escritor, ou por ser médico, ou por
escrever no jornal, uma vozinha debochada me chama à realidade – que besteiras
são essas que andas escrevendo, Mico? – e me faz lembrar que é preciso ser
humilde.
[...]
Fiz o vestibular para
a Faculdade de Medicina. [...] Na Santa Casa, onde tínhamos aulas, e depois,
como interno da Previdência Social, trabalhando em vilas populares da Grande
Porto Alegre, eu entrava em contato com uma realidade para mim quase
desconhecida – a da miséria. Dez, doze pessoas confinadas num casebre imundo,
cheio de pulgas (nunca tive tanta pulga em minha vida), crianças famélicas – um
quadro para mim dantesco. E o país voltava a se agitar. Em 1961 o Rio Grande do
Sul viveu o episódio da Legalidade [...] A mobilização popular no Rio Grande do
Sul foi impressionante; nos três anos seguintes, o clima político tornou-se
conturbado. Reformas de base era a palavra de ordem. Nas assembleias do Centro
Acadêmico da Faculdade de Medicina sucediam-se os discursos inflamados.
¹ SCLIAR, Moacyr. Memórias de um aprendiz de escritor. Apresentação do livro de crônicas Minha mãe não dorme enquanto eu não
chegar. Disponível em Portugues.Free-eBooks.net
As
marcas do cronista
Vocação para escrever, gosto pela
palavra e pela contação de histórias, olhar voltado para o problema social. O cuidado
humanista do cidadão perpassa sua obra literária. Marcas da vida, marcas do
escritor em suas múltiplas manifestações, mas, principalmente: marcas que
definem o cronista, curioso e atento ao que se passa em redor.
Scliar desenvolve muitas de suas
crônicas a partir de notícias de jornal, focalizando toda e qualquer realidade:
o roubo de quadros, a greve de trabalhadores, os cartões de plástico, as
fraudes públicas. Nelas, não faltam a linguagem simples, a leveza e o humor
irônico, mas denunciador, característicos do gênero.
Muitas vezes, toma como matéria uma
realidade mais crua: a menina grávida, o estudante sem sapatos, o trabalho
escravo e tantos outros temas. Mesmo aí, não faz discursos incriminatórios, não
“declama” o sofrimento; apenas mostra, em forma de narrativa, como quem conta um caso, a situação de
miséria, dor, perda (da dignidade, da humanidade, dos direitos).
Assim fazendo, erige o leitor em cúmplice
e deixa que ele complete os sentidos, relacionando fatos narrados a seus
conhecimentos de vida. Resultado: embora o texto pareça leve e a leitura possa
começar desatenta, o drama, aos poucos, chama o leitor a tomar posição e ser
juiz.
Confiram o que digo na crônica abaixo.
Notem que o título parece o de uma “historinha romântica”, e o início da
narrativa parece repetir um episódio banal.
Mas não se iludam...
A
casa das ilusões perdidas
Quando ela anunciou que estava
grávida, a primeira reação dele foi de desagrado, logo seguida de franca
irritação. Que coisa, disse, você não podia tomar cuidado, engravidar logo
agora que estou desempregado, numa pior, você não tem cabeça mesmo, não sei o
que vi em você, já deveria ter trocado de mulher havia muito tempo. Ela,
naturalmente, chorou, chorou muito. Disse que ele tinha razão, que aquilo fora
uma irresponsabilidade, mas mesmo assim queria ter o filho. Sempre sonhara com
isso, com a maternidade – e agora que o sonho estava prestes a se realizar, não
deixaria que ele se desfizesse.
– Por favor, suplicou. – Eu faço tudo
que você quiser, eu dou um jeito de arranjar trabalho, eu sustento o nenê, mas,
por favor, me deixe ser mãe.
Ele disse que ia pensar. Ao fim de
três dias daria a resposta. E sumiu.
Voltou, não ao cabo de três dias, mas
de três meses. Àquela altura ela já estava com uma barriga avançada que tornava
impossível o aborto; ao vê-lo, esqueceu a desconsideração, esqueceu tudo –
estava certa de que ele vinha com a mensagem que tanto esperava, você pode ter
o nenê, eu ajudo você a criá-lo.
Estava errada. Ele vinha, sim,
dizer-lhe que podia dar à luz a criança; mas não para ficar com ela. Já tinha
feito o negócio: trocariam o recém-nascido por uma casa. A casa que não tinham
e que agora seria o lar deles, o lar onde – agora ele prometia – ficariam para
sempre.
Ela ficou desesperada. De novo caiu em
prantos, de novo implorou. Ele se mostrou irredutível. E ela, como sempre,
cedeu.
Entregue a criança, foram visitar a
casa. Era uma modesta construção num bairro popular. Mas era o lar prometido e
ela ficou extasiada. Ali mesmo, contudo, fez uma declaração.
– Nós vamos encher esta casa de
crianças. Quatro ou cinco, no mínimo.
Ele não disse nada, mas ficou
pensando. Quatro ou cinco casas, aquilo era um bom começo.
SCLIAR,
Moacyr. O imaginário cotidiano. São
Paulo: Global, 2002. Crônica baseada em
notícia da Folha São Paulo – Cotidiano; 10 jun. 1999: “Polícia investiga troca de bebê por casa.”
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