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Portinari |
Carnaval parece casar bem com o “espírito brasileiro”, que dizem ser festivo, beirando o libertário. De fato, a época é quase um convite ao descompromisso...
Para
muitos, se compromisso existir, talvez seja mais com a própria liberdade – de
soltar amarras, exteriorizar desejos, quebrar hierarquias e expressar
contestações, pública e coletivamente. Daí a fustigar – de leve, ou não tanto –
hábitos, acontecimentos e personalidades, por meio de palavras, vestes e
máscaras, é um passo.
Em
contrapartida, para os mais saudosistas e/ou românticos, pode ser a oportunidade
de relembrar, refletir e até sonhar, em autêntica viagem interior, da qual invariavelmente
irrompe confrontação de opostos – entre tempos diferentes (passado x presente;
os dias de carnaval x o resto do ano), entre espaços diferentes (exterior
feérico e ruidoso x interior silencioso); entre sentimentos
diferentes (alegria x tristeza; amor x desamor).
Dessas
duas vertentes – uma, irreverente, tendente à sátira e à paródia; outra, mais
compenetrada e emotiva – quero deixar uma pequena amostra, em termos de
literatura e música brasileira.
Começo
pela voz poética de Manuel Bandeira.
O
eu interior carnavalesco
Tudo
cabe no Carnaval intimista de Bandeira, pois tudo é sonho. Inocência e
permissividade, recolhimento e expansividade coexistem nos contrastes de luz e
sombra, ruído e silêncio.
Pistas
de leitura, para o poema a seguir: sobretudo, as partes coloridas e a terceira
estrofe, em seu todo. A observar, ainda, como a repetição de palavras, frases e
ideias ajuda a multiplicar sentidos e reforçar oposições.
Sonho de uma terça-feira
gorda
Eu
estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram as nossas
máscaras.
Íamos,
por entre a turba, com solenidade,
Bem
conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que
nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que
nos penetrava... Que nos penetrava como uma espada de fogo...
Como
a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas.
E
a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
– Dentro de nós, ao contrário, era tudo tão claro e luminoso.
Era
terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava.
Entre clangores de fanfarra
Passavam
préstitos apoteóticos.
Eram
alegorias ingênuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam
em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De
peitos enormes - Vênus para caixeiros.
Figuravam
deusas - deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.
A turba ávida de
promiscuidade,
Acotovelava-se com
algazarra,
Aclamava-as
com alarido.
E,
aqui e ali, virgens atiravam-lhe flores.
Nós caminhávamos de
mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros,
negros...
Mas dentro em nós era
tudo claro e luminoso.
Nem a alegria estava
ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que
estava a alegria,
– A profunda, a
silenciosa alegria...
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1974.
Também de Manuel Bandeira, o poema
seguinte traz oposições mais profundas, ou seja, o embate entre o querer (ser feliz) e o ser (feliz) e, ainda, a revelação, por
meio da obra artística, de dois seres e obras contrastantes: Schumann, com seu
Carnaval resplendente, e o triste eu poético de Bandeira, com o “Carnaval sem
nenhuma alegria” (nem esperança de mudança, como sugere o título).
Epílogo
Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...
Quando o acabei – a diferença que
havia!
O de Schumann é um poema cheio de
amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
– O meu Carnaval sem nenhuma
alegria!...
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1974.
Irreverência
e carnavalização
Na
década de 1960, Stanislaw Ponte Preta (ou Sérgio Porto) criou o “Samba do
Crioulo Doido”, como crítica à exigência oficial de que os enredos das escolas
de samba tivessem como base fatos históricos.
Longe
de desvelar emoções e sentimentos, como se vê em Bandeira, a letra, desde o
título, caminha pela linha da pilhéria e do deboche. O resultado é uma paródia
de samba-enredo que carnavaliza a própria história oficial do Brasil, na medida
em que inverte, embaralha e empastela espaços, tempos e o próprio cotidiano
popular, este representado pela linguagem coloquial, a gíria e a menção às
estações de trem.
Igualmente,
a “proclamação” final da escravidão aponta criticamente para o prolongamento das
condições precárias do povo brasileiro, contrariando o discurso oficial,
invariavelmente ufanista.
Samba do Crioulo Doido
Este é o samba do crioulo doido.
Este é o samba do crioulo doido.
A
história de um compositor que durante muitos anos obedeceu o regulamento,
E
só fez samba sobre a História do Brasil.
E
tome de Inconfidência, Abolição, Proclamação, Chica da Silva, e o coitado
Do
crioulo tendo que aprender tudo isso para o enredo da escola.
Até
que no ano passado escolheram um tema complicado: a atual conjuntura.
Aí
o crioulo endoidou de vez, e saiu este samba:
Foi
em Diamantina, onde nasceu JK,
Que
a princesa Leopoldina arresorveu se casá.
Mas
Chica da Silva tinha outros pretendentes
E
obrigou a princesa a se casá com Tiradentes.
Laiá,
laiá, laiá,
O
bode que deu vou te contá,
Laiá,
Laiá, laiá,
O
bode que deu vou te contá.
Joaquim
José, que também é da Silva Xavié,
Queria
ser dono do mundo e se elegeu Pedro Segundo.
Das
estradas de Minas, seguiu pra São Paulo e falou com Anchieta.
O
vigário dos índios aliou-se a Dom Pedro e acabou com a falseta
Da
união deles, ficou resolvida a questão
E
foi proclamada a escravidão.
E
foi proclamada a escravidão.
Assim
se conta esta história
Que
é dos dois a maior glória,
A
Leopoldina virou trem
E
Dom Pedro é uma estação também.
Ô,
ô, ô, ô, ô, ô,
O
trem tá atrasado ou já passou.
Ô,
ô, ô, ô, ô, ô,
O
trem tá atrasado ou já passou.
Stanislaw Ponte Preta
Stanislaw Ponte Preta
No
vídeo a seguir, a gravação original (com o autor e o Quarteto em Cy) vem
acompanhada de imagens clássicas e caricaturas, capas de livros, pinturas e
fotos em democrática mistura, ilustrando e reproduzindo o nonsense do texto:
Impossível
não relacionar: se voltarmos um pouco atrás, encontraremos essa mesma “irreverência
carnavalesca” em Oswald de Andrade. Seu poema “Brasil” abre para o escracho
rasgado, presentificando e subvertendo outros textos – o poema clássico
I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias e a história oficial –, uma vez que a mistura
de raças, línguas e religiões ali se fundem e se confundem para dar origem, não
ao país, mas ao Carnaval. Do mesmo modo, a linguagem foge deliberadamente da
norma culta, convencionalmente adotada para “grandes textos”, utiliza a fala
popular e arremeda línguas para sugerir percussões rítmicas carnavalescas:
Brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho
da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
ANDRADE, Oswald de. Obras completas – Poesias Reunidas. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
Além
das duas vertentes
União
de linguagens – visual, musical e verbal. Melodia e vozes intimistas;
brincadeira leve, quase infantil, de rabiscar a lousa. Ao mesmo tempo, e no
mesmo espaço, o traço negro, sombrio e até agressivo, criando e destruindo
palavras e sentidos. Falo de Arnaldo Antunes e seu “Carnaval”, que combina o
pseudo-romantismo ao viés crítico, apenas para radicalizar ainda mais a
linguagem poética.
A
desconstrução das palavras e de seus significados é máxima nessa pequena-
grande obra. Nela, a pulverização da frase e as palavras em livre associação
anulam os significados convencionais e chamam a atenção para a
multissignificação do signo poético.
Há,
mesmo, miúdas armadilhas para o leitor/ouvinte desatento, apenas com a troca de
uma vogal: chamado x chamada. Além do sentido que nos vem
logo à mente (ligado ao verbo chamar
= nomear), considerem a possibilidade
de chamada e chamado poderem se referir a chamamento
e até a peça publicitária. Desse
modo, árvore, pássaro e máquina acabam em carnaval e... acabam com o carnaval.
Há
outros sentidos possíveis... Que tal descobri-los (com ou sem auxílio do
dicionário)?
Carnaval
árvore
pode
ser chamada de
pássaro
pode
ser chamado de
máquina
pode
ser chamada de
carnaval
carnaval
carnaval
carnaval
carnaval
carnaval
Arnaldo Antunes
Boas interpretações e bom
Carnaval a todos.
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