Depois das festas, depois das férias,
é hora de voltar às aulas. Hora também, para muitos garotos, de escrever a
redação Minhas Férias.
E quem dentre nós escapou de ter de encarar,
vezes e vezes, essa eterna proposta? Leitor/a, se você foi (ou é) um dos alunos
que passaram (ou passam) por essa experiência de escrita, peço que a recorde
comigo:
- Ficou claro
o objetivo do/a professor/a ao solicitar tal tema? Qual foi?
- Houve
correção, comentário, devolutiva de alguma espécie? Como?
- Qual o
aprendizado que a atividade como um todo – desde a primeira versão até a
possível edição (redação final) – deixou? Qual o ganho para a classe e para si
próprio, enquanto aprendiz da escrita?
São questões
facilmente aplicáveis a outros tantos temas, semelhantes e recorrentes (pense
em Minha Escola, Meu melhor amigo, Meu
professor inesquecível,...), sempre ligados ao pretenso desenvolvimento da
capacidade escritora dos estudantes.
Em que pesem as
várias e modernas teorias contemporâneas do texto (leitura e escrita, produção
e recepção) e os cursos de formação; em que pesem as várias discussões e
políticas públicas, as avaliações institucionalizadas ou não, as semanas de
planejamento pedagógico –, muitas escolas e professores ainda não conseguem se
desapegar de velhas práticas e de atividades que, já ontem, não funcionavam.
Recorro a um conto infantil de
Chistiane Gribel para concretizar e tornar mais visíveis alguns problemas da
produção de textos que ainda subsistem nas salas de aula. (No primeiro momento,
detenho-me, especialmente, na questão dos objetivos e finalidades.)
A seguir, o início da narrativa. A
você que me lê, peço que note, com muito cuidado, os trechos reproduzidos em azul
e os comentários (entre colchetes) que os seguem.
Minhas
férias, pula uma linha, parágrafo
Um
O primeiro dia de aula é o dia que eu
mais gosto em segundo lugar. O que eu mais gosto em primeiro é o último, porque
no dia seguinte chegam as férias.
Os dois são os melhores dias na escola
porque a gente nem tem aula. No primeiro dia não dá para ter aula porque o
nosso corpo está na escola, mas a nossa cabeça ainda está de férias. E no
último, também não dá para ter aula porque o nosso corpo está na escola, mas a nossa
cabeça já está nas férias.
Era o primeiro dia e era
para ser a aula de português, mas não era, porque todo mundo estava contando
das férias. E como todo mundo queria contar mais do que ouvir, o barulho na
classe estava mesmo ensurdecedor. O que explica o fato de ninguém ter escutado
a professora gritando para a gente parar de gritar. Todo mundo estava bem surdo
mesmo. Mas quando ela bateu com os livros em cima da mesa a nossa surdez passou
e todo mundo olhou para ela.
[Notar: todo mundo tem o que contar e quer contar das
férias.]
Ela estava em pé, na frente do
quadro-negro e ficou em silêncio, com uma cara bem brava, olhando para a gente.
Quando um professor está em silêncio
com uma cara bem brava olhando para você, é melhor também ficar em silêncio com
uma cara de sem graça olhando para um ponto qualquer que não seja a cara brava
do professor.
A professora puxou a cadeira dela e se
sentou.
Atrás dela, no
quadro-negro, eu vi decretado o fim das nossas férias e o fim do nosso primeiro
dia de aula sem aula. Estava escrito:
Redação: escrever trinta
linhas sobre as férias.
Eu sabia que as férias
de ninguém iam ser mais as mesmas na hora que virassem redação. É simples:
férias é legal, redação é chato. Quando a gente transforma as nossas férias
numa redação, elas não são mais as nossas férias, são a nossa redação. Perdem
toda a graça.
[O problema: mesmo tendo o que dizer das férias, “férias é
legal, redação é chato”.]
Todo mundo tirou o
caderno de dentro da mochila. Menos eu.
Eu fiquei olhando para
aquela frase no quadro enquanto os zíperes e velcros das mochilas eram os
únicos barulhos na sala. De repente as nossas férias ficaram silenciosas. Onde
já se viu férias sem barulho?
Além do mais, eu tenho
certeza de que a professora nem quer saber de verdade como foram as nossas
férias. Ela quer só saber como é a nossa letra e se a gente tem jeito para
escrever redação. Aqueles dois meses inteirinhos de despreocupações estavam
prestes a virar trinta linhas de preocupações com acentos, vírgulas, parágrafos
e ainda por cima com a letra ilegível depois de tanto tempo sem treino.
[Objetivo: redação... para quê? Para avaliar a clareza da
letra e o “jeito” para redação – o dom, ou, na interpretação da personagem,
conhecimentos de ortografia e pontuação.]
Dois
Dois
A turma inteira já estava escrevendo
quando eu percebi que a professora estava só olhando para mim.
Quando um professor fica parado só
olhando para você é porque você tinha estar fazendo outra coisa que não era o
que você estava fazendo.
A outra coisa que eu tinha que estar
fazendo era minha redação. Então eu puxei a minha mochila e peguei o caderno. É
claro que minha mochila tem o fecho de velcro e que todo mundo olhou para mim
quando eu abri. Só a professora que não olhou de novo porque ela já estava
olhando antes mesmo.
Peguei a caneta. Eu nem
sabia mais segurar direito a caneta. Escrevi:
Minhas Férias
Mas a letra ficou
péssima e eu resolvi arrancar a folha para começar bem o meu caderno. E todo mundo olhou de novo para mim,
até a professora que já tinha parado de me olhar.
Troquei a caneta por um
lápis, porque se a letra ficasse horrível era só apagar em vez de ter que
arrancar outra folha.
Coloquei as minhas
férias lá no alto e bem no meio da página. Pulei uma linha. Parágrafo.
Minhas férias
[A submissão às regras prescritas: a letra e a diagramação:
título, linha, parágrafo.]
Outro problema de
transformar as nossas férias em redação é fazer os dois meses caberem nas tais
trinta linhas. Porque se a gente fosse contar mesmo tudo o que aconteceu, as
trinta linhas iam servir só para um dia de férias e olhe lá.
[Ainda que se tenha o que dizer e se queira fazê-lo, a vida
não cabe em limitado número de linhas...]
E aí você olha para o seu relógio e
descobre que as trinta linhas, que pareciam poucas para contar todas as suas
férias, viram muitas porque você só tem mais 15 minutos de aula para fazer a
redação.
Começar as férias é a coisa mais fácil
do mundo. Em compensação, começar redação sobre as férias é tão difícil quanto começar as aulas.
Fiquei me lembrando como
é que eu tinha começado as minhas férias de verdade. Assim eu podia começar a
redação do mesmo jeito. Mas eu comecei as minhas férias de verdade arrumando a
mala para ir para a casa do meu avô. E agora só faltavam 12 minutos para
terminar a aula. Em 12 minutos eu não ia conseguir arrumar a mala. Pelo menos
não do jeito que a minha mãe gosta que eu arrume. Então decidi começar as
férias de minha redação direto da casa do meu avô.
Minhas férias
Eu sempre adoro as
minhas férias na casa do meu avô. Principalmente porque não tem aula.
Não. Talvez seja um
começo de redação muito pesado para o começo das aulas.
[A escolha do que dizer, segundo o tempo, o número de
linhas e, sobretudo, segundo o que é esperado que se diga.]
Minhas férias
Eu sempre adoro as minhas férias na
casa do meu avô.
Lá tem um campinho de futebol bem
legal e uma turma de amigos bem grande.
Isso é perfeito porque um campinho sem
uma turma grande não serve para nada. E uma turma grande sem campinho não cabe
em lugar nenhum que não seja um campinho. A gente passa o dia todo jogando
futebol e só para de jogar quando já está escuro e não dá mais para ver a bola.
Então já é hora de jantar.
Depois do jantar, os meus melhores amigos
da turma vão para a casa do meu avô e a gente pode continuar jogando, só que
futebol de botão que não dá indigestão. Aí, a gente
pode jogar até tarde porque no dia seguinte não tem aula. É por isso que férias
é bom.
Achei que desse jeito a
minha observação a respeito das aulas ficava mais sutil. Continuei.
[Modo criativo de deixar subentendida a própria verdade
(férias são boas, aulas não são), sem contrariar muito o que é esperado que se
escreva.]
Teve um dia que eu fiz um golaço. Não
no futebol de botão, no de verdade.
O gol veio de um pase de craque do
Paulinho que é o meu melhor amigo entre os meus melhores amigos da turma. Você
sabe que para jogar futebol não adianta só ser bom de bola. Tem que ter tatica.
O Paulinho driblou um, dois e eu vi
que ele ia passar pelo terceiro. Ele também me viu. Aí eu me enfiei pela
esquerda e recebi a bola. Chutei direto. Eu fiz um golaço tão grande que furou
a rede e estilhaçou em mil pedaços a janela do vizinho.
Deu a maior confusão porque enquanto a
turma pulava o vizinho apareceu bravo com abola em baixo do braço e a mulher
dele veio atrás. Eu tive até que parar com a minha comemorassão. Mas a mulher
do vizinho que veio atrás dele falou para ele que criança é assim mesmo e que a
gente estava só se divertindo e que ninguém fez aquilo de propósito. E era
verdade mesmo porque não foi culpa nossa da rede ter furado. E aí acabou ficando tudo
bem. O meu vizinho devolveu a bola, verificou a rede e disse que o meu gol foi
mesmo um golaço mas que era para a gente tomar mais cuidado com as janelas da
casa do lado.
O sinal tocou bem nessa hora. Eu nem
contei quantas linhas eu tinha escrito porque não ia dar tempo de mudar nada
mesmo.
Arranquei a folha e dei as minhas
férias para a professora.
Três
Três
[...]
A semana passou bem rápido e quando a
gente viu já era sexta-feira. [...] O pior foi colocado bem em cima da minha
mesa. As minhas férias, que tinham sido perfeitas
para mim, não chegaram nem perto de terem sido boas para a professora. Elas
voltaram cheias de defeitos.
[A correção centrada em erros. Os acertos não são notados.]
GRIBEL,
Christiane. Minhas Férias, pula linha,
parágrafo. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
“Férias
é legal, redação é chato”
O “drama escolar” da personagem é o de
muitos alunos, o que autoriza a tirar certas conclusões a respeito da prática
de escrita e da interlocução geral em sala de aula.
Por exemplo, quanto aos objetivos,
podemos formular algumas hipóteses. Sendo, pelo tema, redação de início de ano
ou semestre, poderia ser forma de integração e acolhimento: a troca de
experiências agradáveis favoreceria a disseminação de conhecimentos, a
ampliação de horizontes e o estreitamento de laços de camaradagem e cooperação.
Nesse caso, no entanto, seria bem mais aproveitável a interação oral, em forma
de roda de trocas (de relatos, fotos, vídeos). Afinal, a escrita não é a única –
e, às vezes, nem a ideal – forma de interação entre pares...
De todo modo, é preciso reconhecer que
este tipo de proposta tem seu valor: temas que solicitam visões pessoais podem carregar
a louvável intenção de ouvir e conhecer o aluno, de acolher sua história, sua
visão, sua subjetividade. Assim sendo, podem se constituir em excelente forma
de cumprir uma das missões da escola, que é a de inserir o singular e
particular (aqui, o aluno) no coletivo e público (a comunidade classe e
escola).
No entanto...
Com frequência se destaca a falta de
ter o que dizer, por parte do aluno, como causa do “mau texto”. Se isso é
verdade, não o é menos que, se tem o que dizer, nem sempre lhe é dada a oportunidade
de fazê-lo. Ouçamos o jovem estudante do conto de Gribel: “todo mundo estava contando das férias. E como todo mundo queria contar
mais do que ouvir, o barulho na classe estava mesmo ensurdecedor”. Até que...
a professora “bateu com os livros em cima
da mesa, a nossa surdez passou e todo mundo olhou para ela”.
Quem acompanha as redes sociais, sabe
o quanto a população estudantil tem, realmente, a dizer – e como o faz com
prazer e originalidade. Se o professor se mantiver surdo aos anseios e não
acolher a espontaneidade do estudante, artificializará e engessará sua prática.
Mesmo porque, como argumenta a lúcida personagem: “...se a gente fosse contar mesmo tudo o que aconteceu, as trinta linhas
iam servir só para um dia de férias e olhe lá”. E a alegria da vivência
corre o risco de se perder: “Quando a
gente transforma as nossas férias numa redação, elas não são mais as nossas
férias, são a nossa redação. Perdem toda a graça.”
Então, fica explicado por que “férias é legal, redação é chato”!
Pelo crescente dialogar nas redes virtuais,
é possível observar o valor da interação verbal e o quanto a linguagem pode, deve e é usada para
ações sociais. Essa, de resto, é sua função. O escrever por escrever não existe
no macrouniverso da sociedade e, portanto, não deveria existir no microuniverso
da escola. O escrever burocrático e imitativo, sem intenção e interlocução, não
“funciona”, isto é, não move o indivíduo e o grupo, não promove transformações
na história de vida individual e coletiva.
É na palavra transformadora – e não
imitadora – que a escola deve investir. Naquela que promove diálogo, ir e vir
de ideias. Que é comunicação plurilateral, cruzada e transformada em “comum-ação”
entre mestres e estudantes, para o aprendizado das várias linguagens
concretizadas em textos com os quais o cidadão se depara nas várias esferas de
atuação social.
O reverso é vivido pela personagem,
que precisa usar de sutileza para conseguir expressar sua verdade, medir as
palavras para não desagradar à todo-poderosa professora.
Professora que exige número de linhas
e registra erros (“As minhas férias [...]
voltaram cheias de defeitos”), mas não reconhece, por exemplo, a adequada
estruturação do relato do jogo de futebol. (Reveja: há uma situação inicial claramente definida – as férias na casa do avô e o
campinho onde os garotos jogam sempre futebol; sucede-se um jogo movimentado,
com ações/lances rápidos bem
narrados, até o clímax (a bola na
janela); depois, a solução final,
por meio de uma personagem pacificadora: a mulher do vizinho, e o desfecho: a reconciliação).
Faz pensar naquele jovem aluno, cheio
de sonhos e desejos, que se sente enquadrado pela rotina escolar. Dele,
exige-se esforço concentrado em conteúdos que a escola considera importantes –
e que o são, muitas vezes –, mas sem ponte para seus próprios interesses e
motivações. Nesse contexto, é o professor (com aval ou não da escola) que se arvora
em detentor absoluto do conhecimento, responsável por transmiti-lo ao aluno, “esse
mero receptor e reprodutor” de tudo o que vê e ouve...
E o objetivo? Fica sendo, em última
análise, fazer valer sua autoridade e poder.
...Bem, a história da “redação” – de
Gribel e da escola – é longa e... continua no próximo capítulo.
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