A Literatura tem o poder de dizer a Vida, comentava
eu, em matéria anterior (17 de Janeiro de 2014). Resultado e prova disso
é a estreita sintonia que se estabelece entre escritor e leitor: partindo da
mesma fonte – a vida –, o primeiro busca expressar seus variados sentidos; o
outro ressignifica e reorganiza vivências ao mergulhar no universo do texto
criado. Escrita e leitura tornam-se, assim, oportunidades de compreensão intra
e interpessoal, conquanto instauram um enriquecedor diálogo autor- leitor,
responsável por manter vivos os textos e a própria Literatura.
Ana Miranda, ao descrever o espaço onde escreve,
comprova: “... parece que aqui está o caminho para ver o mundo, encontrar
pessoas, descobrir como elas pensam, o que sentem. Estabeleço uma conexão
profunda com as pessoas. Nesse espaço, encontro as portas.”¹
E essas “portas” são também desejadas pelo leitor
que lê textos e obras “para nelas encontrar um sentido que lhe permita
compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que
enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo.”²
O texto, a palavra, a obra não existem fora do
mundo; ao contrário, só existem porque o mundo existe. Ora, se o mundo (e nós,
que o compomos) é prismático, a sua expressão também o é: daí as várias
interpretações de um mesmo fenômeno ou evento, como mostrado em textos sobre o
Ano Novo da publicação passada (17 de Janeiro de 2014). Daí as diferentes
inclinações dos leitores, que elegem este ou aquele autor, obra, texto, como o
que melhor “pinta o mundo da cor de seu sonho”. Pois que, nessa troca de impressões (pense, leitor/a, nos vários
sentidos do termo), quem escreve e quem lê procuram marcas e pegadas um do
outro e de si próprio.
A palavra persegue a vida. Por isso mesmo, proponho
ao leitor e à leitora, sobretudo aos que vivem os problemas desta época no meio
urbano, alguns textos que realçam o embate entre sonho e realidade, tão
próprios do momento que ainda vivemos, de transição entre um ano e outro.
¹CHIODETTO,
Eder. O lugar do escritor. São Paulo:
Cosac & Naify, 2002.
² TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
² TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
Fernando Pessoa
Viver sem raízes e
compromissos: é esta, em última análise, a proposta por trás do desejo de
viagem do eu poético, neste poema. E não é o de muitos de nós, principalmente
ao findar um ano laborioso e cansativo?
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
PESSOA,
Fernando. Cancioneiro. In Fernando Pessoa – Obra poética. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1977.
Rubem Braga
Sua bela crônica parece
interpretar os melhores anseios e as oscilações emocionais de quem se envolve
no turbilhão da vida moderna e tem, na pausa de fim de ano, oportunidade para
repensar seu modo de vida.
Um
sonho de simplicidade
Então, de repente, no meio dessa
desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será
um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providências a tomar, para me
fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer
nenhum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber
uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou os amigos no bar para
dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para
comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo,
assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida bem poderia ser mais simples.
Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa
andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa
gelada? Antes eu tomava a água fresca da talha, e a água era boa. E quando
precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o
prazer que tive na choupana daquele velho caboclo do Acre? A gente tinha ido
pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite
escura, e isso era bom. Quando ficamos cansados, meio molhados, com frio,
subimos a barranca, no meio do mato, e chegamos à choça de um velho
seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me
deitei numa rede branca – foi o carinho ao longo de todos os músculos cansados.
E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que
prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar
algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna
inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar
bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma
vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira; conversamos muito, essa primeira
conversa longa em que a gente vai jogando um baralho marcado, e anda devagar,
como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna
curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais
simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim,
nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de
dizer coisas, dizer coisas... Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo;
tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que
me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de
repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento!
Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número... Para que
tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem
nome, sem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras
e o ribeirão.
BRAGA, Rubem. Quadrante 1. Rio de Janeiro: Editora do
Autor, 1968.
Ferreira Gullar
Ao destacar inúmeras siglas e problemas do homem urbano, esta crônica bem-humorada
indica o contraste entre o romantismo festeiro e a queda sem remissão na
realidade. Desse modo, chama o leitor a aguçar seu senso crítico com relação à
vida moderna. (O poema ao qual o escritor se refere está registrado na matéria anterior: confira.)
Melhor seria se não
começasse
Estou começando a ficar grilado com os inícios de ano. Até recentemente,
não me preocupava com isso. Cheguei mesmo a escrever um poema em que dizia não
ver, nas estrelas do céu nem nas coisas do chão, qualquer sinal de que um ano
novo começa. E concluía: "Começa como a esperança de vida melhor / que
entre os astros não se escuta nem se vê / nem pode haver: / que isso é coisa de
homem / esse bicho estelar / que sonha e luta". Coisa de poeta, porque, na
verdade, como vim a perceber depois, todos os anos, passado o Réveillon e o
Carnaval, começam brabos: é IPTU, é IPVA, é declaração de Imposto de Renda, é
aumento de mensalidade do plano de saúde e o mais que nem se espera!
Este ano, além de tudo o mais, decidiram atormentar-me com o plano de
saúde conhecido por Geap. Uma tortura! Por isso, embora ainda estejamos em
abril, penso que, findo este, outro ano começará – e entro em pânico. Vou ter
que enfrentar tudo isso de novo?
Vejam como as coisas mudam para pior. Antigamente, ao ver terminar o
ano, enchia-me de otimismo. E não só eu, tanto que desde que me entendo, ouço
dizerem: "Ano novo, vida nova". Pode até ser, mas, antes de começar a
vida nova, caem-me na cabeça as mesmas velhas aporrinhações.
Devo admitir que os problemas se tornam piores por culpa minha. Não sou
um bom exemplo de organização, além do mais, confio na lógica, uma lógica que
seria favorável a pessoas como eu, não muito afeitas à burocracia.
E assim é que, de repente, recebo uma intimação da Receita Federal para
ir lá comprovar o que declarei no Imposto de Renda. Os carnês do plano de saúde
estão no envelope, não tenho que me preocupar, mas há duas outras exigências,
relativas a dependentes, cujos documentos sumiram. Depois de buscá-los,
inutilmente, no envelope onde guardei a declaração, decidi procurá-los em outros
envelopes, depois em outras gavetas, depois pela casa inteira. Nada. Estou
frito, concluí.
Bem, esse problema está em aberto, espero que não me metam no xadrez.
Minha sorte é que conto com a boa vontade das pessoas que me atendem. Não
obstante, o estresse me domina.
E me domina porque, como se não bastasse, sumiu também o boleto do IPTU
da garagem (como meu edifício não tem garagem, comprei uma vaga na garagem
mecânica, aqui perto). E o boleto sumiu. Dano-me a procurá-lo, resmungando, por
todas as gavetas. Pergunto à faxineira, que me olha espantada. IPTU? Que diabo
é isso?
Deito-me no sofá para relaxar. E eu recebi mesmo esse boleto? Vou até a
garagem: o boleto estava lá, à minha espera. Coisa que só acontece no começo do
ano, quando nos cobram IPTUs, IPVAs... IPVA?! Acho que não paguei o IPVA do
carro! A placa termina em zero, vai ver que o prazo já venceu! Se venceu, como
vou fazer a vistoria? E, sem vistoria, não vou poder andar com o carro. Era só
o que me faltava!
Telefono para o Detran e recebo uma boa notícia: o prazo foi ampliado,
posso ir ao banco e pagar o IPVA. Aliviado, dirijo-me à agência bancária mais
próxima e pago o IPVA no caixa eletrônico, que emite um recibo. Bem, agora é só
marcar a vistoria.
Ligo para o Detran, dou o número da placa e do Renavam. "O IPVA de
2011 não está pago, meu senhor." Como não está pago, se acabo de pagá-lo e
tenho comigo o recibo? O funcionário me aconselha a ligar para a Receita
Estadual, mas, após 50 inúteis tentativas, decido ir ao banco e descubro que o
valor do IPVA não foi abatido em minha conta, ou seja, o caixa eletrônico me
enganou: fez que pagou e não pagou.
Como estão vendo, em começo de ano, comigo acontece de tudo. Fui ao
guichê, paguei, peguei o recibo, mas continuei receoso; mas, no dia seguinte, pude
marcar a vistoria. Aquela noite, dormi em paz. Mas foi só aquela noite, porque,
no dia seguinte, chegou a carta do Geap, convocando-me a comprovar tudo o que
já está lá comprovado há 30 anos. Fui e me deparei com uma fila sem fim. Deram
a senha de número 898... E, como se não bastasse, leio nos jornais que a
polícia apreendeu a carteira de motorista de Aécio Neves, por estar vencida. E
a minha?Vou ver: venceria em três dias!
Não haveria um jeito de, daqui para a frente, nenhum outro ano começar?
Folha São Paulo, 01/05/11.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0105201127.htm
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