“Vivemos nossas próprias vidas através de textos”,
ensina Carolyn Heilbrun¹. E o filósofo e linguista Todorov completa: “... não
posso dispensar as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas me
permitem dar forma aos pensamentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos
eventos que constituem minha vida.”²
De fato: os textos literários – a palavra
artisticamente construída – cativam a nós, leitores, não tanto por deflagrar o
“Belo”, como muitos podem pensar, mas principalmente por revelar-nos a nós próprios, destrinchando uma teia de emoções que
nem sempre conseguimos compreender em sua complexidade, quanto mais expressar.
Por exemplo: pense, leitor/a, nas experiências de
fim e início de cada ano: verão, festas, férias. Quantas sensações e
sentimentos nos tomam nesta época! Embora pareçam ser os mesmos, ano após ano,
para muitos continuam tentadores os desejos de renovação: fugir ao banal e à
mesmice, substituir pressões e convenções por uma vida mais amena e livre;
trocar as necessidades materiais por enriquecimento espiritual. Mesmo aqueles
que não querem, não procuram e não têm ilusões quanto ao poder estimulante de
algumas datas deixam-se contaminar (minimamente, que seja) pelo ritual de
passagem representado pela troca do ano e suas várias manifestações.
Não lhe parece que, nessas ocasiões, somos levados,
queiramos ou não, a viver num quase turbilhão? Não lhe ocorre que o movimento
todo em que nos envolvemos (ou o esforço para fugir dele) tira um pouco a
capacidade de reflexão e o aprofundamento de seus significados? Atravessamos esse
Tempo muitas vezes em turbilhão de emoções; outras (poucas), em labirintos de distanciamento
– e nem sempre tomamos consciência do que ele representa para nossa vida como
um todo.
A desejável autoconsciência, quem pode nos dar, é a
palavra belamente construída de certos escritores, que alcança iluminar e pôr,
diante dos olhos, nossos mais íntimos afetos. Ela aguça nossa sensibilidade,
amplia nossa percepção dos acontecimentos e a profundidade de nossas vivências.
Com a magia inspirada e inspiradora da criação de múltiplos sentidos, descreve
nossas esperanças, organiza nossos desejos, põe a nu nossas preocupações.
Confira essa verdade em alguns textos de escritores
brasileiros, que transcrevo a seguir.
¹ Em
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a
leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.
² TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
² TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
Quintana
Este precioso poema é conhecido por muitos
leitores, certamente porque, em sua beleza, traduz sentimentos delicados e “diz”
o que muitos experimentam ao findar o ano.
Esperança
Lá bem no alto do décimo segundo
andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as
sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada
miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de
olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de
novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho,
para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
QUINTANA, Mario. Nova Antologia Poética. São Paulo: Editora
Globo, 1998. Disponível em: http://www.releituras.com/mquintana_esperanca.asp
Drummond
É bem outra a reflexão que o intenso poema de
Drummond propõe ao leitor, a saber: a relativização do tempo e do acontecimento
em si – contraposta à continuidade dramática da vida, que se repete em meio à
variedade e se apresenta como um presente ocasional e inexoravelmente finito.
Passagem
do ano
O último
dia do ano
não é o
último dia do tempo.
Outros
dias virão
e novas
coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás
bocas, rasgarás papéis,
farás
viagens e tantas celebrações
de
aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o
tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os
irreparáveis uivos
do lobo,
na solidão.
O último
dia do tempo
não é o
último dia de tudo.
Fica
sempre uma franja de vida
onde se
sentam dois homens.
Um homem
e seu contrário,
uma
mulher e seu pé,
um corpo
e sua memória,
um olhar
e seu brilho,
uma voz e
seu eco,
e quem
sabe até se Deus...
Recebe
com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste
viver mais um ano.
Desejarias
viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai
morreu, teu avô também.
Em ti
mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás
vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo
na mão
esperas
amanhecer.
O recurso
de se embriagar.
O recurso
da dança e do grito,
o recurso
da bola colorida,
o recurso
de Kant e da poesia,
todos
eles...e nenhum resolve.
Surge a
manhã de um novo ano.
As coisas
estão limpas, ordenadas.
O corpo
gasto renova-se em espuma.
Todos os
sentidos alerta funcionam.
A boca
está comendo vida.
A boca
está entupida de vida.
A vida
escorre da boca,
lambuza
as mãos, a calçada.
A vida é
gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
ANDRADE, Carlos Drummond
de. In A Rosa do povo. Reunião – 10
livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
Ferreira
Gullar
A desesperança também
parece tomar conta do poema de Gullar. No entanto, tal qual acontece com
frequência em nossas vidas, o eu poético entende que a instauração do vazio e
da ausência do Novo (bem como o seu contrário) é responsabilidade humana, única
e exclusivamente, para o bem ou para o mal.
Ano Novo
Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).
GULLAR, Ferreira.
Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.
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