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É bom que, antes de
escrever, se viva. (Mercè Rodoreda) |
Na matéria anterior (26/11/2013),
propus o fluir livre da escrita, sem preocupações ou pensamentos insistentes.
Mas, o que está por trás de um
exercício de fluência, para lhe permitir melhorar a performance de quem
escreve?
Pois bem: tal exercício é produtivo,
porque atrás existe “o que dizer”, ou por outra, porque todo indivíduo possui
um material mental interno à disposição, pronto para ser visitado. Ainda naquela
matéria, eu dizia: “a inspiração não é
gratuita; ao contrário, é resultado do trabalho mental, da vida afetiva, das
vivências de cada um, que vão amadurecendo e se organizando em palavras
(pensamos em palavras, é bom não esquecer).”
Portanto, o fluir do pensamento e da
escrita não é mero impulso mágico, mas movimento possível, por solicitar e
promover algo bem real: o repertório individual, as percepções e memórias,
enfim, o conhecimento de mundo de cada um. Daí se depreende que escrever (em
qualquer circunstância, sob qualquer ponto de vista, qualquer que seja a
estratégia adotada) começa bem antes do escrever. A grosso modo, podemos dizer
que começa com “leituras”
(entendidas em sentido amplo), já internalizadas.
Há
leituras e leituras
O rico material cognitivo, racional e afetivo
de cada indivíduo é, pois, um dos combustíveis que permitem pôr em movimento o
dizer, ou seja, a fala e a escrita. Todo ser humano acumula tesouros de
sensações, percepções, emoções e saberes, advindos das constantes “leituras”
que faz do mundo que o rodeia. Nesse momento, ainda não me refiro à leitura de
“outros textos” (livresca, institucionalizada), mas àquela apreensão que nos
vem pelos sentidos, pelas sensações, pelas emoções.
Falo dessa espécie de leitura – do mundo - citada por Paulo Freire, ao
reviver a infância no Recife (mas que se prolonga por toda a vida):
A velha casa, seus
quartos, seu corredor, seu sótão, [...] aquele mundo especial se dava a mim
como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo, como o mundo de
minhas primeiras leituras. [...] Os “textos”, as “palavras”, as “letras”
daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros [...]; na dança das copas
das árvores [...].¹
Seu belo texto (que vale a pena ler na
íntegra) vai além, estendendo essa “leitura sem livros”, que estruturava suas
primeiras aprendizagens, ao movimento das chuvas, às cores das folhagens, aos
sabores das frutas, aos animais. Dessa apreensão particular, igualmente faziam
parte as conversas dos mais velhos, os medos infantis, os lampiões de querosene,...
Falo, também e ainda, dessa espécie de
leitura que envolve todos os sentidos e transforma-se em conhecimento afetivo,
antes mesmo de chegar à análise da razão, descrita por Bartolomeu Campos de
Queirós:
Por
meio dos sentidos suspeitamos o mundo. [...]
Com os olhos nós olhamos a vida. Olhamos as águas rolando entre pedras, peixes,
algas. [...] Com os ouvidos nós escutamos o silêncio do mundo. E dentro
do silêncio moram todos os sons: canto, choro, riso, lamento. [...] Com
o nariz sentimos os cheiros do mundo. Cheiros que passeiam pelos ares. [...]
Com a boca sentimos o sabor das coisas... Mas o sabor acorda nossa memória. [...]
Pela pele experimentamos as sensações... A pele é raiz cobrindo o corpo
inteiro. [...] Em cada sentido moram outros sentidos.²
São essas experiências leitoras de raiz que os “outros textos” – aí, sim, de
livros, quadros, esculturas, músicas, danças, enfim, formas de expressão
verbais ou não –, vêm, com o tempo (e ao mesmo tempo), completar e alargar.
De seu lado, longe de se restringir
aos livros escolares obrigatórios, o campo específico da leitura verbal consegue abarcar
formas de apropriação mais amplas e marcantes, sobretudo quando curiosidade e
desejo de saber tomam conta:
Eu não queria saber de categorias gramaticais não. Queria
saber de outras coisas. Eu lia era revista, era livro, jornais. Eu queria era
satisfazer minha curiosidade, não era ler gramaticalmente como vocês por aí
não. [...] Muito curioso para saber as coisas, tudo o que eu lia eu gravava
aqui na mente. Eu queria era ler as histórias, a vida da pátria e isso e
aquilo, queria saber das coisas, não queria saber de livro de concordância e isso
e aquilo.³
Por
todas essas vias, forma-se o repertório pessoal, revelado na escrita de cada um
– de tal modo que, por mais impessoal que o escritor queira ser, sua marca fica
impressa e o denuncia. Conhecimentos (e desconhecimentos), valores, afetos, juízos,
tempos e espaços vividos aparecem em nosso dizer, identificando e diferenciando
cada um de nós.
A ilimitada
riqueza da experiência humana só poderia, mesmo, resultar em um caleidoscópio acumulativo
de verbalizações – emocionais, racionais, explosivas, conciliadoras, reiteradoras,
repetitivas, amorosas... infinitas.
¹ Freire, P. A importância do ato de ler: em três artigos que
se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983.
² QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Os cinco sentidos. São Paulo: Global, 2009. (Adaptação.)
³ Patativa do Assaré.
Digo e não peço segredo. Org. Luiz T. Feitosa. São
Paulo: Escrituras, 2003.
Como uma
coda
Bartolomeu Campos de Queirós
sintetiza com clareza e sensibilidade tudo o que ficou dito acima, em seu texto
Foram
muitos, os professores. Dele, deixo aqui fragmentos significativos.
Minha mãe
guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela copiava receitas de amorosos doces
[...]. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordados, com nomes camuflados
em pesares [...]. No terceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimentos
[...]. Eu reparava em seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava
sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das
palavras.
Meu pai,
junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns
poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de
sol a sol. Aos pedaços ele lia os
compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava o silêncio, sem me aventurar
em perguntas ou demandas. [...]
Meu
irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu
livro de leitura. Passava horas soletrando, com
desalento, seus afazeres. [...] Eu
invejava o lugar de meu irmão estudando afluentes do Rio Amazonas, a rosa dos ventos,
os pontos cardeais, as três caravelas.
Minha
avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia
as recomendações. [...] Eu reparava sua fé e
guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na
possibilidade de o passado se repetir no futuro.
Maria Turum, empregada antiga do meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me oferecia um pedaço de
doce ou me abraçava em seu colo. [...]
Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e, se, tossia durante a
noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã.
Meu avô,
arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa.
[...] Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando
seus significados. Meu avô era um construtivista
(sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido
às coisas. Tudo lhe servia de pretexto. [...] Meu avô poderia
ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação,
tivesse licenciatura plena. [...] Meu
avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua
escritura.
Fui acolhido por dona Maria Campos, minha primeira
professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel
de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo a limpeza do
uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu
livro. [...] Encher o caderno com fileiras e fileiras de a, e, i,
o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os
sinais para escrever e ler o mundo.
QUEIRÓS,
Bartolomeu Campos de. Foram muitos, os
professores. In: ABRAMOVICH, Fanny (Org.). Meu professor inesquecível. São Paulo: Gente, 1997.
Observação
final
O texto de Bartolomeu
Campos de Queirós pode ser encontrado, quase completo, no vídeo:
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