Ontem, portanto, foi dia de lembrar sua
morte; hoje – um dia depois –, celebramos seu nascimento. Talvez este seja um sinal
de renascimento e perenidade...
Mesmo que não acreditemos nesse tipo
de coincidência, é justo relembrá-la e, em paralelo, exaltar sua modernidade,
manifesta tanto em escritos mais densos quanto naqueles (só) aparentemente mais
simples. É o caso da crônica a seguir, na qual se refere a um bandido –
Mineirinho –, morto com treze tiros pela polícia.
Ao leitor não escapará a lúcida e apaixonada
reflexão sobre o Eu e o Outro, perfeitamente aplicável a problemas sociais de
aqui e agora.
Mineirinho
É, suponho que é em mim, como um dos
representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um
facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram
Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava
sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar
de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias
por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível
também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria
perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já
matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um
pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim,
que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para
se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que
ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente
que não matou”. Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vidas
insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim
não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque
ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que,
se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no
terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me
cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de
horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em
espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro
tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a
repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me
salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de
mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e
o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter
esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser
erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com
horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que
ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E
de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu
sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é
o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o
modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de
vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo
de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu
dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas consequências,
mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós
furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos.
Para que a casa não estremeça.
A violência rebentada em Mineirinho
que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça
aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se
erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado
inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito:
também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma
justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em
Mineirinho – essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito
doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que
dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama
perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se
transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se
tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não
porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que
não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me
envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se
adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a
bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo,
porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de
outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa
casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à
primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de
pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força
desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas
a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as
paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos
não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me
cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à
imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente
fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos
essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há
alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa
que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele
roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa
alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem
metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós.
Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se
incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido
que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o
que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele
que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não
for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela
doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos
policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco
mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que
se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o
bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de
que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve
muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que
nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem
pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer
livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que
nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está
mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o
seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso –
nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o
sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir
tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no
abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e
mais difícil: quero o terreno.
[Texto
escrito para a Revista Senhor,
06/1962. Disponível em: Instituto de Psicologia da USP/Portal]
“No
fundo, eu escrevo muito simples, sabe?”
Em fevereiro de 1977, ano de sua
morte, Clarice Lispector concedeu entrevista a Júlio Lerner, da TV Cultura.
Nela, fala sobre algumas obras (entre elas a crônica transcrita acima) e sobre
outros assuntos ligados à sua produção literária. Vale a pena ouvi-la: franca e
difícil, transparente e misteriosa, sempre radicalmente fiel a si e à sua
escritura.
Deixo, como sugestão:
2. Um vídeo, com a mesma entrevista,
além de depoimentos de Olga Borelli e Suzana Amaral e algumas preciosidades de
Clarice:
EMOCIONADA....IDENTIFICAÇÃO TOTAL COM CLARICE... POSTAGEM DIVINA, LILIAN!
ResponderExcluirBJO GRANDE, AMIGA!
PARABÉNS PELO BLOG TÃO PRECIOSO, QUE NOS ENSINA E NOS EMOCIONA TANTO!
Querida Jeanne, amiga e poeta, sua avaliação é preciosa. Agradeço o carinho, o comentário sobre o texto e o blog. Beijo!
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