Simples e fáceis de ler, as fábulas são nossas velhas conhecidas, desde a escola e os livros infantis – o que não significa servirem apenas às crianças...
Nessas pequenas histórias, as personagens,
geralmente animais, mostram o embate de características bem humanas, refletindo
condições e comportamentos do indivíduo e da sociedade. Seu enredo contém sempre uma crítica e uma
advertência a nós, seres pensantes, com relação a alguma conduta pouco ética.
Leitor ou leitora, você deve ter se
lembrado, pelo menos, de A raposa e as uvas, O leão e o ratinho, A galinha e os
ovos de ouro, O lobo e o cordeiro, A cigarra e a formiga. Aqui, pretendo abordar
esta última e focalizar o diálogo entre várias versões.
O
ensinamento original
Para começar, aí vai uma das inúmeras
versões do que se imagina ser o texto original de Esopo, criador desta fábula.
Esopo - A Cigarra e a Formiga
Era inverno e as formigas botaram para secar os grãos que a chuva molhara. Uma cigarra faminta lhes pediu o que comer. Mas as formigas lhe disseram:
Era inverno e as formigas botaram para secar os grãos que a chuva molhara. Uma cigarra faminta lhes pediu o que comer. Mas as formigas lhe disseram:
– Por que tu também não armazenaste tua
provisão durante o verão?
– Não tive tempo – respondeu a cigarra –, no
verão eu cantava.
As formigas completaram:
– Então agora dance.
E caíram na risada.
Esopo.Trad. Antônio Carlos Vianna. Fábulas
de Esopo. Porto Alegre: L&PM, 2001.
Na breve conversação entre personagens,
fica evidente a intenção didática e moralizante. Outras versões vão ainda mais
longe e terminam por uma sentença (a “moral”), que sintetiza e reforça a
“lição” a ser aprendida:
“Trabalhemos
para nos livrarmos do suplício da cigarra, e não aturarmos os motejos das
formigas”¹ (como uma voz aconselhadora);
“Os
preguiçosos colhem o que merecem.”² (como voz condenatória).
¹ Versão
Justiniano J. da Rocha.
² Versão Vera Rossi.
² Versão Vera Rossi.
Diálogo e transformação: a lição modificada
Todo
leitor estabelece uma relação de diálogo com o que lê. Assim, na leitura da
fábula em questão, pode concordar com ela, discordar, rebater, querer
emendá-la, de acordo com o que entendeu e, também, com o que pensa, sente e
vive.
Leitores-escritores,
La Fontaine e Lobato (e outros mais) foram adiante, retrabalhando o texto
original. O francês assume o discurso de Esopo, mas de modo ligeiramente
diferente:
La Fontaine - A Cigarra e a Formiga
A cigarra, sem pensar
em guardar,
a cantar passou o verão.
Eis que chega o inverno, e então,
sem provisão na despensa,
como saída, ela pensa
em recorrer a uma amiga:
sua vizinha, a formiga,
pedindo a ela, emprestado,
algum grão, qualquer bocado,
até o bom tempo voltar.
A cigarra, sem pensar
em guardar,
a cantar passou o verão.
Eis que chega o inverno, e então,
sem provisão na despensa,
como saída, ela pensa
em recorrer a uma amiga:
sua vizinha, a formiga,
pedindo a ela, emprestado,
algum grão, qualquer bocado,
até o bom tempo voltar.
"Antes
de agosto chegar,
pode estar certa a senhora:
pago com juros, sem mora."
Obsequiosa, certamente,
a formiga não seria.
"Que fizeste até outro dia?"
perguntou à imprevidente.
"Eu cantava, sim, Senhora,
noite e dia, sem tristeza."
"Tu cantavas? Que beleza!
Muito bem: pois dança agora..."
pode estar certa a senhora:
pago com juros, sem mora."
Obsequiosa, certamente,
a formiga não seria.
"Que fizeste até outro dia?"
perguntou à imprevidente.
"Eu cantava, sim, Senhora,
noite e dia, sem tristeza."
"Tu cantavas? Que beleza!
Muito bem: pois dança agora..."
LA
FONTAINE, Jean de. Trad. Milton Amado e Eugênio Amado. Fábulas
de La Fontaine,
![]() |
A cigarra e a formiga,
ilustração de Gustave Doré
para a fábula de La Fontaine
|
O texto de La Fontaine relativiza um
pouco a seriedade de Esopo, ao privilegiar o trabalho com a linguagem e atrair
o leitor para rimas e ritmo. Contudo, sob a capa do divertimento, ressurge o
drama, com cores mais carregadas: o modo de dizer – especialmente, a descrição
da penúria da cigarra, a narração do resultado de sua imprevidência, a ironia
final – envolve e “ensina” o leitor (ver negrito).
A lição torna-se ainda mais cristalina e encarna o
espírito burguês da época, se a ela juntarmos a ilustração criada por Gustave
Doré, com o uso de figuras humanas (ao lado). Nela, a dona de casa (em plano
superior) e suas crianças olham com reprovação a cantora cabisbaixa e seu
violão: clara exaltação da atividade produtiva e da vida regrada, familiar, em
detrimento do viver boêmio.
E Lobato? Em sua recriação, o escritor
divide a fábula em duas “partes”, cujos títulos já anunciam a postura do
narrador. Perceba que o primeiro texto, até certo ponto, parece seguir os
anteriores, fazendo prever o castigo da cigarra. Mas...
Lobato - A formiga
boa
Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.
Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.
Mas o bom tempo afinal passou e
vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas
tocas.
A pobre cigarra, sem abrigo em
seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.
Manquitolando, com uma asa a
arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu – tique, tique, tique...
Aparece uma formiga, friorenta,
embrulhada num xalinho de paina.
–Que quer? – perguntou,
examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
– Venho em busca de um
agasalho. O mau tempo não cessa e eu...
A formiga olhou-a de alto a
baixo.
– E o que fez durante o bom
tempo, que não construiu sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo,
respondeu depois de um acesso de tosse:
– Eu cantava, bem sabe...
– Ah! ... – exclamou a formiga
recordando-se. Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós
labutávamos para encher as tulhas?
– Isso mesmo, era eu...
– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas
horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava
o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil
cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre
cantora dos dias de sol.
Moral:Os artistas - poetas, pintores, músicos, escritores - são
as cigarras da humanidade.
LOBATO, Monteiro.Fábulas.
São Paulo: Brasiliense, 1982.
Pois é, com esse desfecho, a
filosofia das fábulas de Esopo e La Fontaine, voltada para o trabalho e seu
mérito (só quem trabalha tem o direito de comer), é substituída pela
valorização da solidariedade e da arte. Desde o título, o leitor está diante de
um novo tipo de fábula, ou, ao menos, do uso da fábula para uma lição bem
diferente da tradicional.
Na segunda narrativa de Lobato, a
história e o desfecho são os dos textos mais antigos; porém, como o título aqui
também antecipa, o narrador toma partido da cigarra, condenando a avareza da
formiga e denunciando a desqualificação do trabalho do artista, vigente, de
certa forma, ainda hoje. Observe os diminutivos; as expressões indicativas de
crueldade (do tempo e da formiga) e carência (da cigarra); a interpelação
direta por parte do narrador, buscando adesão de quem lê (realçados em negrito):
Lobato - A formiga má
Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.
Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.
Foi isso
na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com seu cruel manto de gelo. A cigarra, como de costume, havia cantado sem
parar o estio inteiro e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa
onde abrigar-se nem folinha que comesse.
Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou - emprestado, notem! - uns miseráveis
restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo
que o tempo o permitisse.
Mas a
formiga era uma usurária sem entranhas.
Além disso, invejosa. Como não
soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.
- Que fazia
você durante o bom tempo?
- Eu...
eu cantava!...
-
Cantava? Pois dance agora, vagabunda!
- e fechou-lhe a porta no nariz.
Resultado:
a cigarra ali morreu entanguidinha;
e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste. É que
faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra, morta por causa da
avareza da formiga. Mas se a
usurária morresse, quem daria pela falta dela?
LOBATO, Monteiro.Fábulas.
São Paulo: Brasiliense, 1982
As
leituras comparativas levam à constatação: se o pensamento muda, a linguagem
também muda. A linguagem de Lobato é outra, porque interpreta uma visão de
mundo também diversa. O escritor não anula o passado: ele o retoma, porém
modificando-o, como a destacar a forma diferente (dele e de sua época) de
enxergar e avaliar as condutas.
Uma pausa
Repare, leitor/leitora, nos protestos
sociais e políticos deste ano de 2013; eles parecem se distribuir numa gradação
entre dois discursos básicos. Numa ponta, uns, sisudos, indignados, moralistas,
às vezes até um pouco ingênuos: mais conservadores, parecem não pedir grandes
mudanças estruturais, apesar de condenar comportamentos pouco éticos. No extremo oposto, movimentações não menos
indignadas, talvez, mas jocosas e, por vezes, até agressivamente maliciosas,
exigem alterações mais drásticas. Entre os dois, há diversas gradações.
O quê?! Então, vamos discutir
política?
Longe de mim! Apenas quero aproximar
aqueles dois (ou mais) modos de manifestação de nosso presente assunto,
considerando-os também como textos em diálogo e, de quebra, comparando-os às
nossas fábulas.
Note: as críticas sérias e organizadinhas têm certo perfil que lembra a
filosofia das fábulas de Esopo e La Fontaine. Por outro lado, algumas um pouco
mais incisivas (eu diria, contestadoras, porém, afetuosamente brincalhonas), são
mais aparentadas à doce indignação de Lobato, que reverte a lição tradicional,
ao apresentá-la por outro ângulo. Outras, ainda... vão longe, muito longe.
Algo muda ainda mais... nas fábulas e na vida
Indo além, desejo mostrar outras versões da mesma
fábula, que, questionam com maior vigor e desconstroem os discursos
tradicionais – como as manifestações da outra ponta, que vimos (e vemos, ainda)
nas ruas e redes sociais: críticas até certo ponto divertidas, mas
simultaneamente mordazes, ácidas, que incomodam a muitos, por não dispensar o
deboche e uma boa dose de subversão.
São textos mais afinados com o espírito do leitor de
nosso tempo, não só pelo conteúdo atualizado, como também pela maneira mais
solta e escancaradamente irônica de abordar o tema. Vamos a eles.
Millôr - A
cigarra e a formiga
Cantava a Cigarra
Em dós sustenidos
Quando ouviu os gemidos
Da Formiga,
Que, bufando e suando,
Ali, num atalho,
Com gestos precisos
Empurrava o trabalho:
Folhas mortas, insetos vivos.
Ao ver a Cigarra
Assim, festiva,
A Formiga perdeu a esportiva:
"Canta, canta, salafrária,
E não cuida da espiral inflacionária!
No inverno,
Quando aumentar a recessão maldita,
Você, faminta e aflita,
Cansada, suja, humilde, morta,
Virá pechinchar à minha porta.
E, na hora em que subirem
As tarifas energéticas,
Verá que minhas palavras eram proféticas.
Aí, acabado o verão,
Lá em cima o preço do feijão,
Você apelará pra formiguinha.
Mas eu estarei na minha
E não te darei sequer
Uma tragada de fumaça!"
Ouvindo a ameaça,
A Cigarra riu, superior,
E disse com seu ar provocador:
"Você está por fora,
Ultrapassada sofredora.
Hoje eu sou em videocassete
Uma reprodutora!
Chegado o inverno,
Continuarei cantando
– sem ir lá –
No Rio,
São Paulo
Ou Ceará.
Rica!
E você continuará aqui
Comendo bolo de titica.
O que você ganha num ano
Eu ganho num instante
Cantando a Coca,
O sabãozão gigante,
O edifício novo
E o desodorante.
E posso viver com calma
Pois canto só pra multinacionalma".
Cantava a Cigarra
Em dós sustenidos
Quando ouviu os gemidos
Da Formiga,
Que, bufando e suando,
Ali, num atalho,
Com gestos precisos
Empurrava o trabalho:
Folhas mortas, insetos vivos.
Ao ver a Cigarra
Assim, festiva,
A Formiga perdeu a esportiva:
"Canta, canta, salafrária,
E não cuida da espiral inflacionária!
No inverno,
Quando aumentar a recessão maldita,
Você, faminta e aflita,
Cansada, suja, humilde, morta,
Virá pechinchar à minha porta.
E, na hora em que subirem
As tarifas energéticas,
Verá que minhas palavras eram proféticas.
Aí, acabado o verão,
Lá em cima o preço do feijão,
Você apelará pra formiguinha.
Mas eu estarei na minha
E não te darei sequer
Uma tragada de fumaça!"
Ouvindo a ameaça,
A Cigarra riu, superior,
E disse com seu ar provocador:
"Você está por fora,
Ultrapassada sofredora.
Hoje eu sou em videocassete
Uma reprodutora!
Chegado o inverno,
Continuarei cantando
– sem ir lá –
No Rio,
São Paulo
Ou Ceará.
Rica!
E você continuará aqui
Comendo bolo de titica.
O que você ganha num ano
Eu ganho num instante
Cantando a Coca,
O sabãozão gigante,
O edifício novo
E o desodorante.
E posso viver com calma
Pois canto só pra multinacionalma".
FERNANDES, Millôr. Veja.com
2009 - ed.2120.
Vaz
Nunes - A cigarra e a formiga
Era uma vez uma formiguinha e uma cigarra que eram muito amigas.
Era uma vez uma formiguinha e uma cigarra que eram muito amigas.
Durante
todo o Outono, a formiguinha trabalhou sem parar, a fim de armazenar comida
para o período de Inverno. Não aproveitou nada do Sol, da brisa suave do fim da
tarde, dos lindos pôr do sol do Outono nem da conversa com as amigas. Só vivia
para o trabalho!
Enquanto
isso, a cigarra não desperdiçou um minuto sequer: cantou durante todo o Outono,
dançou, aproveitou os tempos livres, sem se preocupar muito com o Inverno que
estava a chegar.
Então,
passados alguns dias, começou a arrefecer.Era o Inverno que estava a bater à
porta.
A
formiguinha, exausta, entrou na sua singela e aconchegante toca, repleta de
comida. Entretanto, alguém chamava pelo seu nome do lado de fora da toca e,
quando abriu a porta, ficou surpresa: era a sua amiga cigarra, vestida com um
maravilhoso casaco de lã e com uma mala e uma guitarra nas mãos.
– Olá,
amiga! – cumprimentou a cigarra. – Vou passar o Inverno em Paris. Será que você
podia cuidar da minha toca?
– Claro!
Mas o que aconteceu para você ir para Paris?
A cigarra
respondeu-lhe:
– Imagine
você que, na semana passada, eu estava a cantar num restaurante e um produtor
gostou tanto da minha voz que fechei um contrato de seis meses para fazer espetáculos
em Paris. A propósito, amiga, deseja algo de lá?
A
formiguinha respondeu:
– Desejo,
sim: se você
encontrar por lá um tal de La Fontaine, o que
escreveu a nossa história, mande-o esfregar-se em
urtigas...
Moral da história: Aproveite a sua vida,
saiba dosear trabalho e lazer, pois trabalho em demasia só traz benefício nas
fábulas do La Fontaine.
VAZ
NUNES, prof. Via internet, 2003. Link já
indisponível.
Para concluir
Se os textos de Monteiro Lobato servem de
contrapalavra (espécie de resposta, diálogo modificador) aos seus antecessores,
o que dizer dos modernos? Mais que contrapalavra, parecem ser uma “palavra
contra”, por levarem a crítica até o ponto de dessacralizar e quase destruir os
sentidos anteriores. Portanto, reformulando e parafraseando uma frase lá de
trás: quando as ideias se radicalizam, a linguagem e os textos tornam-se, por
sua vez, mais radicais e ferinos.
Mas não podemos nos esquecer de que tais textos
“funcionam” e cumprem a finalidade de mexer com o leitor, principalmente porque
este conhece a versão convencional. A veia humorística do autor e sua intenção
crítica contam com os conhecimentos prévios de quem lê, pois a crítica se
manifesta de modo mais contundente pela comparação entre um texto mais brando e
outro, mais inflamado.
Assim como nas manifestações...
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