Não
gosto e não preciso
Creio que todos nós deveríamos, sem
sermos profissionais, dançar, cantar, tocar um instrumento, desenhar, pintar,
escrever: trata-se de experimentar a plenitude da vida, unindo o útil ao agradável...
Entretanto, nossas vidas cristalizam certos roteiros e por vezes excluem
outros, entre eles, os que levam às formas de expressão pessoal, como as mencionadas.
Isso é particularmente verdadeiro com
relação à escrita (e à leitura), que a maioria de nós não tem como prioridade ou
atividade de eleição, até por julgá-la enfadonha ou dispensável.
Quero lembrar, aqui, o que já deixei
registrado outras vezes: todos nós, que vivemos em sociedade letrada,
frequentemente nos defrontamos com circunstâncias praticamente inevitáveis, em
que é imperativo escrever. Existimos e
atuamos em situações nas quais, para alcançar certos objetivos, precisamos produzir
textos escritos, ora formais, ora informais – desde os domésticos, aos profissionais
e acadêmicos. Escrevemos para pedir e dar informação, organizar tarefas
cotidianas, influenciar outros, demonstrar sentimentos, expor conhecimentos,
relatar ações...
Assim, a afirmação de alguns, de que a
escrita não faz falta, falseia a realidade. Lucy Calkins¹ vai ainda mais longe e ultrapassa
as razões impositivas:
Os
seres humanos sentem uma profunda necessidade de representar sua experiência
neste mundo através da escrita. [...] Escrever permite que transformemos o caos
em algo bonito, permite que emolduremos momentos selecionados em nossas vidas.
[...] Escrevemos porque queremos entender nossas vidas. [...] Por debaixo de
camadas de resistência, possuímos todos uma necessidade primária de escrever.
¹ Em A arte de ensinar a escrever. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
Prazer ou
dor?
Como se vê, há vários motivos para escrever, uns
obrigatórios, outros nem tanto. O que me faz lembrar das “caixas” de Rubem
Alves, ao teorizar sobre educação:
Já
resumi minha teoria de educação, dizendo que o corpo carrega duas caixas. Uma
delas é a ‘caixa de ferramentas’, onde se encontram todos os saberes
instrumentais, que nos ajudam a fazer coisas. Esses saberes nos dão os ‘meios
para viver’. Mas há também uma ‘caixa de brinquedos’.
Brinquedos não são ferramentas. Não
servem para nada. Brincamos porque o brincar nos dá prazer. [...] Eu disse ‘caixa das ferramentas’ e ‘caixa de brinquedos’. Santo
Agostinho disse ‘ordem da utilidade’ e ‘ordem da fruição’. Freud disse
‘princípio da realidade’ e ‘princípio do prazer’.²
Que fique claro: na caixa de ferramentas estão produções escolares, relatórios,
memorandos, currículos para empresas, listas de compras, enfim, os textos com
os quais organizamos nossa vida e a necessária comunicação com o outro, nas
diversas circunstâncias utilitárias da vida: são os nossos “instrumentos”
imprescindíveis.
Na caixa de
brinquedos estão os escritos (serão eles menos imprescindíveis?) que
elaboramos não por obrigação, mas por vontade própria e para realização
individual: cartas (e-mails) a amigos, postagens nas redes, contos e poemas nos
quais soltamos a fantasia, diários em que registramos eventos, sentimentos e
opiniões. Escrevemos quanto e quando temos vontade, prestando contas apenas a
nós próprios.
Muitos concordarão comigo quanto à caixa de
ferramentas, mas não quanto à de brinquedos: a esses, peço que reflitam sobre a
propagação de mensagens via Facebook, Twitter, Google+, por exemplo, nem sempre
“necessárias”... Observem como até quem afirma não gostar de escrever transmite/compartilha
gostosamente, por escrito, a programação do dia, a notícia mais impactante e
suas reações aos acontecimentos, nas redes sociais.
Voltando à caixa de ferramentas: é auxílio, mas igualmente,
para muitos de nós, tormento... Buscar a ferramenta adequada, saber o momento
exato de usar cada uma, apertar ou afrouxar certo parafuso: isso que faz o
carpinteiro, o eletricista, o pedreiro, exige concentração, disciplina, foco no
objetivo. Na escrita, equivale, no mínimo, a saber o que dizer, para que, para
quem, e qual o resultado esperado. Demanda realizar escolhas entre uma palavra e
outra, uma ideia e outra; quais privilegiar, quais abandonar; como concatenar,
o que repetir, como concluir. Qual um operário, o escritor precisa tomar
decisões e responsabilizar-se pelo resultado – e isso pode pesar, doer.
O ideal, claro, é conquistar uma escrita de tal
modo competente e realizadora que, mesmo quando obrigatória, proporcione prazer
a quem escreve... e a quem lê. Educadores e professores conhecem bem esta
verdade: aprende-se melhor, partindo do pessoal e prazeroso; a necessidade
interior e não imposta cria envolvimento do ser integral e conduz mais
rapidamente à satisfação e autorrealização, em qualquer área.
Assim deve acontecer com os
desdobramentos da atividade escrita: um brincar que é “coisa séria
que é divertida”, para usar as palavras de Rubem Alves. Semelhante à
criança, quando se
entrega totalmente ao lúdico: se é brincadeira de casinha ou de xerife, compõe
o cenário com cuidado, acerta os detalhes, mexe, troca objetos de lugar; se é
jogo de armar, concentra-se na composição do objeto, experimenta esta ou aquela
peça, substitui por outra, combina de várias formas, até chegar ao esperado.
Diverte-se com o processo e alegra-se com o resultado.
² Trechos encontrados em:
- O Desejo de Ensinar e a Arte de Aprender.
Campinas: Fundação EDUCAR DPaschoal, 2009;
- Educação dos Sentidos. Campinas: Verus
Editora, 2005.
Motivos
para escrever
Se escrever envolve também labores, quando não,
dissabores, o que leva alguém a praticá-lo? Será compreensível a paixão de tantos
pela escrita? Reproduzo, a seguir, textos que podem fornecer pistas e
inspiração para nosso próprio exercício de escrever.
Anne
Frank, em seu Diário
Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta. [...] Ao escrever sei esclarecer tudo, os meus pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias. [...] O melhor de tudo é o que penso e sinto, pelo menos posso escrever; senão, me asfixiaria completamente.
Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta. [...] Ao escrever sei esclarecer tudo, os meus pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias. [...] O melhor de tudo é o que penso e sinto, pelo menos posso escrever; senão, me asfixiaria completamente.
Clarice Lispector, em entrevista a José Castello
J.C.— Por que você escreve?
C.L. — Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?
J.C. — Por que bebo água? Porque tenho sede.
C.L. — Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva.
J.C.— Por que você escreve?
C.L. — Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?
J.C. — Por que bebo água? Porque tenho sede.
C.L. — Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva.
Clarice Lispector
Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...
Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...
Paulo
Leminski - Razão de ser
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
E
você, leitor, por que escreve (ou não)? Por que já escreveu (ou não)? Por que
escreveria (ou não)?
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