Uma
dúvida
Há poucos dias, um pai, preocupado com
a tarefa escolar do filho, perguntou-me: “Afinal, o que tem a ver produção de
narrativa com estudo de adjetivos e advérbios?”
Para responder, quero abordar certos
aspectos da narrativa, iniciando pela importância que sempre teve para o
indivíduo e para o grupo social.
Desde lá no passado (imaginem nossos
antepassados em volta de fogueiras) até hoje (nos agrupamentos ultramodernos
das redes sociais), importa ao ser humano contar de si e receber o contar do
outro. É uma forma de resgatar sua essência e refletir sobre experiências,
colocando-as diante si, assim arrumadas em palavras. (Michèle Petit,
antropóloga e pesquisadora, diz isso de maneira muito bonita: “Afinal, somos
seres de linguagem em perpétua busca dos prazeres da expressão”.)
E não é apenas o caso de registrar o
vivido em relatos memorialísticos, mas de transformá-lo, experimentando na
ficção, sem maiores danos à integridade do ser, outros modos de viver, pensar,
sentir. Thomas Pavel, especialista em Literatura, justifica assim: “Eu preciso
dos mundos da ficção para me separar provisoriamente da vida que levo [...],
sem, no entanto, rasgar o tecido dos laços que me constituem”.
Não é à toa que a criança cria suas
histórias de casinha, bandido e mocinho, etc. Da mesma maneira, não é por acaso
que, de certa forma, prolongamos essas vivências infantis para o resto da vida,
divertindo-nos com o jogo ficcional, em várias linguagens (verbal, visual,
plástica, musical, gestual).
Ora, esses reviveres (sejam
memorialísticos, sejam ficcionais) não constam somente de fatos que se sucedem.
Eles englobam tempo, espaço, sentimentos, pensamentos, características de
seres, objetos e ambientes. (Afinal, estamos longe de ser robôs!) Do mesmo modo,
as palavras que os interpretam não irão representar apenas as ações, o que, por
si só, diria muito pouco.
Por isso mesmo, uma boa narrativa,
além de apresentar personagens (gramaticalmente,
nomes) e seus fazeres
(gramaticalmente, verbos de ação),
organiza-se também em torno de adjetivos
e de advérbios que vão detalhar, caracterizar, contextualizar
o mundo (tempo e espaço), qualificar
ou circunstanciar as ações e os estados físicos e psicológicos dos seres
que “habitam” a história. Esses elementos ajudam a conferir coerência, unidade,
peso, dimensão e “autenticidade” às ações e personagens, além de coesão,
garantindo as relações entre partes e todo.
Está aí o valor de adjetivos e
advérbios para a narrativa. Para apreender melhor, tomemos, como exemplo, o
texto de um aluno de 5º ano, transcrito abaixo. Peço que atentem,
principalmente, para os negritos (com que destaquei não só alguns adjetivos e advérbios, mas também certos conjuntos de
palavras que exercem tais funções, pois servem de qualificadores e
circunstanciadores).
A
travessura que deu certo¹
No litoral de São Paulo, um garoto chamado Dereck morava em uma casa de praia. Ele não tinha amigos, pois não conhecia quase ninguém, sua única companhia eram seus cachorros, que brincavam com ele como se fossem gente. Havia quatro cachorros grandes e uma pequena. A pequena se chamava Lola.
No litoral de São Paulo, um garoto chamado Dereck morava em uma casa de praia. Ele não tinha amigos, pois não conhecia quase ninguém, sua única companhia eram seus cachorros, que brincavam com ele como se fossem gente. Havia quatro cachorros grandes e uma pequena. A pequena se chamava Lola.
Por ser pequena, Lola não podia participar de algumas brincadeiras. Mas
sempre se achava a mais esperta do
grupo e dava um jeito de se meter em encrencas, ao contrário
dos outros, que eram bem-comportados.
O pai de Dereck era pescador, então Dereck ia todo dia à praia para brincar com os cachorros.
Um
dia, Dereck estava
brincando na areia com seus cães,
quando falou a eles:
– Fiquem aqui! Vou nadar um pouco e já
volto. Ele foi ao mar e nadou para a frente, cada vez mais... Quando se tocou, estava muito fundo, e começou a se afogar. E ele gritava:
– Socorro, socorro!!
Seus cachorros sabiam nadar, mas eram obedientes e não saíram do lugar, mas
Lola saiu correndo, entrou no mar e salvou Dereck.
Depois
desse dia, Dereck
deixou Lola brincar de qualquer coisa e decidiu nunca mais entrar no fundo
do mar.
¹ Texto o mais próximo possível do
original, mas corrigido linguisticamente para esta matéria.
Alguns
comentários
A narrativa, aparentemente simples,
apresenta certo requinte em sua elaboração – e isso se deve, em boa parte, à
presença das caracterizações e circunstâncias (em outras palavras, adjetivos e
advérbios) que “recheiam” personagens, qualidades e ações.
É possível perceber, por exemplo, a
importância da contraposição de qualidades de Lola (pequena, esperta, encrenqueira) e dos companheiros (grandes, bem-comportados, obedientes),
para o salvamento de Derek pela menor: os maiores não ousaram desobedecer...
Embora sem esgotar o assunto, quero
estender um pouco, mencionando certas orações que funcionam como
adjetivos/qualificações, para mostrar outras relações que mantêm a coerência da
narrativa:
- [Derek] não tinha amigos (era só) X [cachorros] brincavam com ele como se fossem gente (os animais substituem os amigos inexistentes);
- O pai de Dereck era pescador X Dereck ia todo dia à praia (a qualificação do pai justifica a continuidade da ação (ir à praia) e propicia o ambiente onde se desenrola a história).
- [Derek] não tinha amigos (era só) X [cachorros] brincavam com ele como se fossem gente (os animais substituem os amigos inexistentes);
- O pai de Dereck era pescador X Dereck ia todo dia à praia (a qualificação do pai justifica a continuidade da ação (ir à praia) e propicia o ambiente onde se desenrola a história).
Do
mesmo modo, vejam como funcionam os advérbios, para sinalizar:
-
a mudança de um estado de tranquilidade/equilíbrio, que se passa na areia, para outro, de
desequilíbrio/problema, que acontece no
mar;
-
a gradação das ações – (nadar) para a
frente/cada vez mais/ muito fundo;
- e o desfecho, mostrando a mudança na
ação – depois desse dia; nunca mais... no fundo do mar.
Agora, comparem a uma possível versão,
editada sem a maioria dos adjetivos e advérbios. Notem como a grande parte das
relações apontadas – e a própria coerência – fica comprometida. Reparem, ainda,
como o título perde o sentido e a ligação com a personagem Lola (que, no
original, desobedecia e salvava Derek).
A
travessura que deu certo
“No litoral de São Paulo, morava um
garoto chamado Dereck.
Sua única companhia eram seus
cachorros, que brincavam com ele. Havia quatro cachorros e a cachorra Lola.
Lola não podia participar de
brincadeiras.
Dereck ia todo dia à praia para
brincar com os cachorros.
Dereck estava brincando com seus cães,
quando falou a eles:
– Fiquem aqui! Vou nadar e volto. Ele
foi ao mar e nadou. Quando se tocou começou a se afogar. E ele gritava:
– Socorro, socorro!!
Seus cachorros sabiam nadar, mas não
saíram do lugar, mas Lola saiu correndo, entrou no mar e salvou Dereck.
Depois desse dia, Dereck deixou Lola
brincar de qualquer coisa e decidiu nunca mais entrar no fundo do mar.”
Assunto
esgotado?
Longe disso! Aguardem, pois voltarei a ele...
Longe disso! Aguardem, pois voltarei a ele...
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