Quem
é escritor?

Para estes últimos vale a prática de
ler um texto e, tendo por base algumas de suas características ou mesmo
palavras, escrever o seu. Não importa que a nova escrita se limite a substituir termos específicos, conservando
certo sentido original e/ou estrutura (mas emprestando-lhe maior ou menor contribuição
própria), como propus nos contos lacunados do dia 10/09/2013. Ou que
haja o movimento mais amplo de completar
o texto, com base em seu título ou início (lembram-se de “A Quinta História”, de Clarice?). Ou dar-lhe
um final. Ou ainda, em voos mais ousados, mudar substancialmente o rumo da
significação, mas conservando o “esqueleto”,
a estrutura.
Alguns leitores podem estranhar minha
posição e argumentar que as propostas acima não chegam a gerar escritas, mas,
quando muito, alguma “diversão em linguagem verbal”. Por outro lado, em vez de escritores, não
estaria, eu, estimulando plagiadores? E mais: qual o mérito de tal prática?
Vamos analisar juntos.
Leitor ou leitora, já observou como a
criança aprende a falar? No princípio, apenas repete as palavras dos outros;
depois, repete as dos outros, mas já acrescentando alguns termos próprios; por
fim, aventura-se a compor suas frases, refletindo, na crescente autonomia e
riqueza da linguagem verbal, a progressiva independência de seu pensamento e
ações.
Pois bem: para mim, independente dos
casos e das idades, há uma maneira relativamente segura e indolor de
desenvolver a escrita, e é seguindo aquele percurso da construção da linguagem
pela criança pequena. Muitos professores, felizmente, usam adequadamente essa
via, de tal forma que o aluno, desde a Educação Infantil, torna-se escritor (sim, escritor), progredindo cada vez mais em seu nível de competência. Assim,
conforme as informações valiosas de Maria da Graça Abreu¹, primeiro, a criança reconta
histórias narradas ou lidas; depois, dá-lhes um final, ou imagina o que
acontece com alguma personagem. No campo do poema, sabe-o de memória e
transcreve-o, inventa novas rimas, substitui palavras – até, por fim, criar um.
Portanto, partir da imitação auxilia o
aprendizado da (fala e) da escrita, pois dá confiança aos pequenos. De igual
forma, a subsequente e gradativa autonomia é que vai possibilitar caminho mais
confortável na direção da autoria.
Ah, não somos crianças... Não. No
entanto, em algum momento da vida, muitos de nós nos sentimos na primeira
infância da produção escrita, mesmo com mais idade. Especialmente quando chega
o dia em que é imprescindível escrever – na escola, no dia a dia ou na
profissão, por exemplo –, a obrigatoriedade da escrita se torna angustiante
para muitos.
Outras vezes, o imperativo pode ser o legítimo
desejo de organizar os pensamentos em textos (poéticos ou não), mas as palavras
parecem demorar a se arranjar.
Nessas circunstâncias... vale
recorrer à imitação?
¹
Educadora, assessora de LP, especialista em alfabetização.
Não
só nós, simples mortais
Mesmo escritores (quem sabe, com
espírito e sensibilidade de professores...) já se manifestaram em favor dessa
forma de aprendizado. Há frases de Moacyr
Scliar bastante citadas, a respeito:
“Aprendi que, quando se começa, plagiar
não faz mal nenhum. Copiei descaradamente muitos escritores, Monteiro Lobato,
Viriato Correa e outros. Não se incomodaram com isto. E copiar me fez muito
bem.”
“Aprendi que a cópia não é crime, pelo contrário, é
inevitável e natural no início do processo de escrita. Agora me sinto com a
consciência mais leve, pois já perdi a conta de quantos autores já me foram
úteis na composição dos meus textos.”
“Copiar”, nesse caso, tem um
significado bem próximo de “inspirar-se”, “tomar como modelo”, e não o de
“colar literalmente”. Vejam como Mario de Andrade aconselha o jovem e ainda
inexperiente Fernando Sabino, em carta de 1942:
"...
E, já falei, creio, você precisa ler muito Machado de Assis, mas ler como
reler, roubando ele, plagiando ele, não no estilo nem no espírito mas na
delicadeza de sentimento.”
Cópia: entre o castigo e a redenção
Qualquer que
seja o processo usado para “colar” outro texto – dizer a mesma coisa, empregando
outras palavras; complementar o que é dito, usando palavras e ideias próprias;
reinventar partes ou o todo, aproveitando a mesma estrutura; criar um novo
texto, valendo-se do tema original – ele será um caminho, nunca a meta final.
Desse modo, a cópia (o “plágio”) não será
crime nem provocará nenhum castigo... Porque aquele que assim se exercita acrescentará,
necessariamente, sua marca, sua identidade: aí está a via do progresso, rumo
à autoria. Por isso, “plagiemos”, lembrando-nos de que esse “trabalho” não
é simplesmente imitativo² – como deixa claro Mario de Andrade, ainda
aconselhando Sabino:
“Machado de
Assis não deve ser para você uma companheiro de vida, mas apenas um tesouro
onde você vai roubar. Roube dele tudo quanto possa ser
útil a você, jogando o resto fora. Mas sempre
não esquecendo que você pode roubar errado. O problema é
delicadíssimo. Veja o problema do estilo: se você escrever,
chegar a escrever no estilo de Machado de Assis você si esculhamba por completo,
si perde³.”
Trata-se de converter o texto em coisa
nossa, como se fosse um objeto de que nos apropriamos. Assim, a palavra de grandes autores pode nos
dar o abençoado impulso para voar e interpretar o que vai na alma e na mente de
cada um, reorganizando e transformando momentos e situações vividas,
presentificando lembranças e descobertas.
²
Ampliarei o assunto em outra matéria.
³ Mario fazia questão de manter a fala coloquial e informal, por isso a conservei aqui.
³ Mario fazia questão de manter a fala coloquial e informal, por isso a conservei aqui.
Que
tal experimentar, mais uma vez ou pela vez primeira?
Quem de nós não sentiu, em alguma
ocasião, a necessidade de revisar e reinventar a vida? Pois escrever é isso:
reinventar a vida em palavras.
É o exercício que hoje proponho, mas
em dose dupla: recriar o poema de Ferreira Gullar (a seguir) e, ao mesmo tempo,
usá-lo como ponto de partida para revisitar algum aspecto da vida de cada um. Para
isso, pode ser tomado todo o texto, ou apenas alguma parte que seja
significativa a quem se dispuser a escrever.
Mãos à obra!
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Traduzir-se
Uma parte de mim
é ________
outra parte é ________:
________ sem ________.
uma parte de mim
é ________:
outra parte ________
e ________.
Uma parte de mim
________, ________:
outra parte
________.
Uma parte de mim
é ________:
outra parte
________.
Uma parte de mim
é só ________:
outra parte,
________.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Uma parte de mim
é ________
outra parte é ________:
________ sem ________.
uma parte de mim
é ________:
outra parte ________
e ________.
Uma parte de mim
________, ________:
outra parte
________.
Uma parte de mim
é ________:
outra parte
________.
Uma parte de mim
é só ________:
outra parte,
________.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?