Hoje, escrevo para os corações (e
estômagos) fortes, pois venho trazer Clarice Lispector, que não costuma usar
meias-palavras. Eu, fiel a ela, proponho seu texto sobre... baratas.
Não, leitor e leitora, não quero
afrontá-los, ou causar reações inusitadas. É certo que não deixarei de fazer
certa provocação, mas esta é mais de Clarice que minha.
Por que, então, este texto? Porque
nós, leitores e escritores (sim, escritores, mesmo que em potencial), podemos aprender com ele, observando ao menos quatro aspectos:
- a característica tão “Clarice” de transformar um assunto banal em escrita inventiva;
- a proposta de várias versões para a mesma narrativa, sugerindo inúmeras possibilidades de criação literária, a partir de uma frase inicial;
- a maneira como o texto se estrutura, fazendo lembrar a Matrioshka russa, com suas bonecas similares, mas de vários tamanhos, que se encaixam umas nas outras;
- a relação essencial que os títulos mantêm com as respectivas versões.
Uma simples, porém, cuidadosa leitura nos
levará a perceber, facilmente, os dois primeiros itens. Quanto aos outros dois,
iremos aprofundar, após a leitura do texto. Vamos a ele.
A quinta história
Esta
história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O
Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três
histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única,
seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
A
primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma
senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em
partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o
gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
A
outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim:
queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra
o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que
nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício
até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas
também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa
concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de
ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto
que roia casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de
dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu
aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me
guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que
existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a
receita estava pronta, tão branca. baratas espertas como eu, espalhei
habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama,
no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de
serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas
depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No
chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em
nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
A
terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu
me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que,
de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que
eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um
arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas
de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro
para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se
completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira
testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da
orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num
processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão
sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si
mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal
olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago,
sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! —
essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te...
Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto
aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que
se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita
do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para
dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo.
Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história
anterior canta o galo.
A
quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de
baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas
olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta
e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? –
como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me
conduziria sonâmbula até o pavilhão? – no vício de ir ao encontro das estátuas
que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida
dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de
viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois
caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha
seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente
no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.
A
quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”.
Começa assim: queixei-me de baratas...
Histórias e títulos
Você, leitor,
provavelmente/certamente percebeu que os títulos e os textos mantêm (aliás,
como sempre deveria acontecer), estreita ligação. Mais precisamente: cada
título orienta o leitor para o foco principal, dá pistas que o levam a caminhar
pelo mais importante de cada versão. Vejamos.
Como o título (Como Matar Baratas)
indica, a primeira versão, bastante objetiva, traz/relata simplesmente a
receita para matar baratas, a ação e seu resultado.
A segunda história (O assassinato) amplia a primeira,
explorando, principalmente, a subjetividade da “assassina”: o modo como
justifica a necessidade de matar, o rancor, o medo, a excitação, a firme
determinação em praticar o ato.
Na terceira, a narradora também privilegia
aspectos subjetivos, mas, agora, das... baratas. Imagina (sabe) como foi sua
última noite. Espectadora, descreve a
agonia das mortes, o último alento de algumas delas e a rigidez final, anunciada
no título (Estátuas).
Na quarta, a narradora analisa suas próprias
reações perante um final que conduziria, em moto contínuo, a um eterno recomeço.
E opta por outro desfecho, drástico e definitivo. Como não há título, deixo uma proposta ao leitor:
- reler a quarta narrativa;
- eleger seu foco, o mais importante, segundo sua leitura;
- baseado nisso, criar um título adequado
Agora, a quinta história, ou: quem conta um conto...
...
Aumenta, diminui ou modifica um ponto. Até a quarta história, Clarice dá à narradora
o poder de brincar e “rascunhar” várias vezes a mesma narrativa, partindo do
mesmo ponto e transformando/acrescentando elementos. Na quinta, o rascunho se limita praticamente
ao título, numa bela provocação ao leitor: quem sabe, sair da passividade,
empreender um movimento criativo e escrever, ele próprio, a história. E por que
não? Como a escritora/narradora afirma no início, muitas versões poderiam ser
criadas, a partir do mesmo tema: “Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e
uma noites me dessem.”
O leitor ou
leitora, agora escritor/escritora, pode aceitar a brincadeira provocativa do
título. Ou criar outro, se não se sentir à vontade com sua desafiadora
incoerência. No entanto, proponho que o início (“queixei-me de baratas”) seja mantido.
Difícil?
Bem, é possível um belo escritor começar assim... Vejam este depoimento de
Fernando Sabino: “Quando eu
era menino, algumas histórias que eu lia não me satisfaziam: imaginava para
elas outros episódios e um fim diferente. Então passei a escrever histórias como
eu gostaria que elas fossem.“
Que tal pegar carona nesse exemplo? Bom trabalho
aos que ousarem!
Nota
final (como uma “coda”)
Ao privilegiar certas facetas, deixei outras de
lado, mas ao leitor atento não deve ter passado despercebido que o texto de
Clarice não se esgotou, e que muitas riquezas ficaram pelo caminho, quem sabe,
para futura abordagem.
Deve ter notado, por exemplo, as referências a
diversas obras e acontecimentos (a destruição de Pompeia, o dilúvio bíblico, o
galo de João Cabral, as mil histórias de Sherazade). Ou a existência de uma
“sexta história”, fundamental, composta pelo conjunto de todos os textos, em
que o processo de como matar baratas
torna-se metáfora de como construir um
texto – esta, sim, a importante “receita”, o aprendizado para o
leitor/escritor, que em parte pôde ser vislumbrado acima.