Certas experiências parecem não caber
num só indivíduo: precisam, quase exigem ser compartilhadas. Ao mesmo tempo,
quando se tem o que dizer, as palavras vêm mais facilmente. Brotam e se
arranjam – tecem-se, vestindo-se (e investindo-se) de pensamentos e
emoções.
Nesse sentido, as crônicas de Carlos
Heitor Cony, inspiradas por sua cadela Mila, são modelares. Por meio delas, o escritor partilhou muitas
vivências afetivas com o público do Jornal Gazeta do Povo.
Nesta que transcrevo, a emoção dita as
palavras... e as não palavras. Em certos
trechos, percebam o silêncio, ou antes, a recusa de dizer claramente a
realidade. Notem as palavras que apenas sugerem
– aumentando a carga emotiva. Parece haver até mesmo certo pudor, certa
tentativa de não agredir o leitor (e de não se agredir) com a própria dor...
O leitor contribui com sua própria
experiência e conhecimento de mundo. Preenche os claros e subentendidos, de
forma a chegar ao pleno sentido do texto.
Mila
Era pouco maior do que minha mão: por
isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha
muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa
primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando
abriu os olhinhos, olhou-me profundamente: escolheu-me para dono. Pior: me
aceitou. Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a
patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento?
Amá-la — foi a resposta, e
também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica
contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que
se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça
em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser
maior do que a minha tristeza.
Tendo-a a meu lado, eu perdi
o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi
uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser
três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu "fumos
fidalgos", como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era uma lady, uma
rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.
No sábado, olhando-me nos
olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de
todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem
maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim. Eu me
considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que
houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi
possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que
eu acabasse a crônica para ficar com ela.
Até o último momento, olhou
para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu
peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade.
[CONY, Carlos Heitor. - Gazeta do
Povo, Rio
de Janeiro, 04/06/1995.]
Depois
da crônica...
... Deixo uma sugestão. Você, leitor, que
certamente viveu e vive tantos momentos de forte afetividade, quem sabe,
inspirando-se no belo texto de Cony, também se anime a organizar sua emoção em
palavras.
- Comece escrevendo palavras soltas, sem a preocupação de ligá-las. Não serão palavras quaisquer, mas aquelas recheadas de seus sentimentos, sensações, emoções, impressões.
- Depois, procure relacioná-las; para isso, use traços que unam esta àquela, esta outra às duas anteriores ou àquela outra... Continue, até enlaçar todas. (As não enlaçáveis talvez sejam candidatas ao descarte...)
- Depois, ainda, ordene os vínculos, de tal forma que façam sentido para você, de acordo com o que pretende dizer.
- A partir daí, sua constelação de palavras já estará esboçando algumas imagens ordenadas. Aproveite essas imagens e transforme-as em frases, períodos... Teça seu texto!
- Leia, releia, mude palavras, reordene... e eis sua crônica afetiva no papel.
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